Resenha

Vitória sobre o preconceito, o frio, a fome e os alemães

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Vitória sobre o preconceito, o frio, a fome e os alemães Editora Age/Divulgação

Você sabe de onde eu venho – a conquista brasileira do Monte Castelo, livro lançado pelo conhecido escritor e cineasta gaúcho Tabajara Ruas, na Feira do Livro deste ano, nasceu como folhetim, em 2012. Foram 50 capítulos, publicados aos sábados, no suplemento cultural de Zero Hora, de 14 de janeiro a 22 de dezembro.

Nos onze anos que separam os dois lançamentos – do folhetim e do livro –, o mundo enfrentou a pandemia da covid-19 e o isolamento social, que durou mais de um ano. Com a volta à “normalidade”, fomos surpreendidos com a intensa movimentação literária, um fenômeno mundial. Houve – e ainda há – lançamentos de incontáveis títulos, assinados por autores conhecidos e estreantes. Assunto já tratado aqui pela Parêntese.

O autor de Netto perde sua alma, A cabeça de Gumercindo Saraiva, Perseguição e cerco a Juvêncio Gutierrez e de tantas outras obras de sucesso, também dedicou os dias fechados em casa às letras.Transformou o folhetim em livro. 

– Por que relançar o tema em forma de livro? Pergunto a Tabajara, homem da fronteira, nascido em Uruguaiana.

– Porque vi que faltavam muitas informações e eu queria fazer algo mais completo, me diz, por telefone, enquanto espera pela comida, em um restaurante de Florianópolis, onde vive há alguns anos.

Ao compararmos o escrito de 2012 com o de 2023, vemos que Tabajara aprofundou alguns dados sobre a participação do Brasil na Segunda Guerra, de julho de 1944 a maio de 1945. O romance histórico mistura realidade e ficção. 

– Para escrever este livro busquei informações em numerosos diários de soldados e oficiais, jornais da época, relatórios, ensaios e memórias reais – afirma Tabajara, no capítulo Fontes Bibliográficas, o último do romance.

O texto de abertura é o mesmo nas duas edições. Somente o título usado na primeira publicação – Ataque no mar do Nordeste – foi excluído:

“Cabo da Bahia, 15 de agosto de 1942

Seu Antenor, o chef, consultou o relógio de pulso, 19 horas em ponto, lançou um olhar crítico para a pequena vela de cera azul fincada no centro do bolo sobre a mesa e ordenou:

– Leva, Pedrinho.”

Pedrinho, o catarinense Pedro Diax, aos dezessete anos, trabalhava, com o seu irmão mais velho, Dico, no Baependy, navio do Lloyd Brasileiro. Ao retornar à cozinha, o rapaz viu algo brilhando no mar. Eram os dois torpedos, disparados por um submarino alemão, contra o navio brasileiro, que estava prestes a atracar em Maceió.

Pedrinho é um dos personagens fictícios. Entre eles estão quatro enfermeiras e um soldado gago. Todos – figuras reais e imaginárias – sofrem, na Itália, o preconceito dos oficiais norte-americanos, a falta de roupas para enfrentar o frio e de armamento prometido, mas não entregue aos brasileiros. A cada derrota eram humilhados pelo general Crittenberger, comandante do IV Corpo do Exército dos Estados Unidos, ao qual a FEB – Força Expedicionária Brasileira estava ligada.

Cerca de um terço do livro, Tabajara dedica aos ataques dos submarinos alemães a navios brasileiros, à decisão de Getúlio Vargas de entrar na guerra ao lado dos Aliados, à preparação dos pracinhas da FEB, dos aviadores da FAB e das enfermeiras. O ritmo, neste início, é mais lento e mexe menos com as emoções dos(as) leitores(as) do que o restante, que trata dos ataques aos alemães, entrincheirados no Monte Castelo, caminho para chegar a Berlim e derrotar as forças de Hitler. 

O batismo dos brasileiros ocorreu dois meses após terem chegado ao seu destino. Na reunião, que preparou o ataque, o general Mascarenhas de Moraes, comandante da FEB, avisou: “Que ninguém se engane, vai ser duro”. O general Zenóbio da Costa, escolhido para comandar a investida contra os inimigos, acrescentou: “Quem está lá é a 148. É uma Divisão famosa, com veteranos da Rússia. Eles não vão se expor”.

A partir deste ponto, o texto adquire outro ritmo: mais rápido e mais tenso. É impossível parar de ler, mesmo sabendo o final. A empatia do(a) leitor(a) com os pracinhas é total. Somos tomados(as) pelos seus sentimentos: medo, dúvida, dor pelos ferimentos, pelos pés cheios de bolha, pela morte de companheiros, coragem para enfrentar as balas dos alemães, munidos de canhões. Eles lutam contra o frio, que congela, a fome, que provoca enjoo. Passam horas infinitas se arrastando montanha acima, escorregando, sem ter onde se apoiar. Sentem vergonha por serem obrigados a recuar. A derrota reforça a decisão de vencerem, de mostrarem que não temem a morte.

Acompanhamos, ansiosos (as), os jovens pilotos da FAB, treinados nos Estados Unidos. São eles a esperança e a defesa de quem está em terra, sendo impiedosamente bombardeado pelo inimigo. Os jovens pilotos voam em meio a forte artilharia antiaérea alemã. Muitos são atingidos. Morrem queimados, destroçados pelo choque do avião contra o solo. Alguns conseguem saltar e voltar para a sua base. Os que caem na zona alemã são ajudados pelos italianos antifascistas. 

A raiva toma conta de nós toda a vez que o general Crittenberger, um homem rude e direto ao falar, reclama da ação dos soldados brasileiros:

– Na minha opinião, disse  Crittenberger, após a primeira missão da FEB, os brasileiros não mantiveram as posições conquistadas. E isso criou um efeito em cadeia que resultou no fracasso de toda a operação.

O norte-americano, que mais parecia um alemão, não olhava para os erros de seus comandados. Mascarenhas de Moraes contestava as críticas, evitando brigar. Mantinha o controle, porque, como comandante da FEB, ele era o Brasil.

– Pelo que eu pude observar, afirmou o general brasileiro, o motivo do fracasso da operação foi a falta de cobertura encarregada ao vosso 370º. Regimento de Infantaria que simplesmente não apareceu no local combinado.

Tabajara é bom de diálogo. Vai nos levando pela réplica, tréplica e quantas mais contestações o debate exigir.

Folhetim e livro acabam, logicamente, com a tomada do Monte Castelo pelos brasileiros. Mas o autor mudou completamente o final de Você sabe de onde eu venho. O último capítulo do folhetim, intitulado O despertar, informa que os 25 mil combatentes da FEB, proporcionalmente, foram “a segunda tropa que ficou mais tempo em ação contínua durante todo o conflito”, em que morreram 433 pracinhas e três mil foram feridos. A FEB capturou 20.573 prisioneiros. Neste final, o escritor revela o rumo tomado por três enfermeiras e quatro soldados, personagens fictícios:

“Dulce ficou no exército e fez brilhante carreira militar. Zoé voltou para Recife, casou e nunca mais entrou num quartel. Virgínia foi morar em Londres. Pedrinho e Adão voltaram a fazer a dupla de ataque do Imbituba, mas sem o mesmo sucesso de antes. O alemão João Wogel chegou em casa e foi recebido com uma grande festa.O kerb durou uma semana com mesa farta e dezenas de barris de chope, com direito a discurso do prefeito.”

“Pedro Diax andou algum tempo embarcado na marinha mercante, mas voltou a Imbituba e abriu uma mercearia. Casou e teve dois filhos, Maciel e Aldemir. O gago Atílio ganhou na loteria, mas perdeu tudo no jogo e na bebida. Tinha ataques de pânico. (…) Há uma grande paz no mar e na tarde. Mas Pedrinho não se engana. Ele sabe: o maior e mais cruel dos monstros, a fúria humana, está à espreita, sempre, do nosso silencioso desespero.”

No livro, os números sobre a FEB estão no Epílogo. A história termina – texto 160 – com uma conversa entre os generais Mascarenhas e Cordeiro de Farias. Os militares caminham para longe do local, onde os alemães apresentam a sua rendição.  Estão aliviados com a vitória, e com o telegrama elogioso recebido do tosco general Crittenberger, que termina dizendo: “Meu general, os resultados obtidos pela FEB, sob o vosso elevado comando, constituem um alto feito militar que vos concederá um lugar proeminente na história desta guerra”.

Nem preciso dizer que gostei do livro e o recomendo, principalmente, para quem se interessa pelo assunto. No entanto, tenho uma observação a fazer: o autor abandonou cedo demais as enfermeiras e o seu trabalho árduo. Assim como o governo de Getúlio esqueceu-se dos pracinhas, no seu retorno à pátria. As enfermeiras somem da história muito antes da vitória dos brasileiros sobre os alemães. Elas não fazem parte deste último ato vivido pela FEB, na Europa. O meu protesto, no entanto, não desqualifica a obra do fronteiriço Tabajara Ruas, que, em 11 de agosto, deste ano, completou 81 anos, sendo mais de 50 dedicados à literatura.


Nubia Silveira é jornalista

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