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Ricardo Silvestrin visita os extremos de Ronald Augusto

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Ricardo Silvestrin visita os extremos de Ronald Augusto Ronald Augusto. Foto: Santiago Fontoura/Divulgação

Um dos nomes mais instigantes da poesia brasileira contemporânea, Ronald Augusto vive um momento prolífico de sua carreira literária – que contempla ainda a crítica, o ensaio e a edição de livros e publicações. Em atividade há quase 40 anos, o autor lançou nada menos do que três títulos em 2020: A Contragosto do Solo, coletânea de poemas publicada pela Selo Demônio Negro, de São Paulo, em edição de capa dura, O Leitor Desobediente, coleção de ensaios pela editora porto-alegrense Figura de Linguagem, e Tornaviagem (192 páginas, R$ 39,90), também uma coletânea de poesia, que saiu pela Kotter Editorial, de Curitiba.

O também poeta Ricardo Silvestrin, parceiro de Augusto no grupo musical poETs – que inclui ainda o igualmente poeta Alexandre Brito – escreveu uma resenha sobre o livro Tornaviagem, que publicamos aqui em primeira mão. Reproduzimos abaixo também o prólogo que Augusto escreveu sobre sua obra. Boas leituras!

Duas ou três coisas sobre Tornaviagem

Ronald Augusto

Em respeito à – felizmente não absoluta – liberdade de interpretação do leitor, essa nota a Tornaviagem não será longa. Embora o conjunto se divida em cinco seções, na verdade ele se constitui mesmo a partir de três perspectivas ou interesses de linguagem, a saber: (1) poemas de temática vária ou cujos modelos compositivos têm aparecido de maneira recorrente em outros livros que publiquei nas últimas duas, três décadas, e as seções “Torneios de agora”, “Mais depois” e “Subir ao mural” representam tais procedimentos; (2) poemas políticos motivados pelas circunstâncias antidemocráticas dos últimos anos em nosso país, isto é, antipoemas que começo a escrever a partir de 2016, quando Dilma Rousseff sofre o processo de impeachment e onde vislumbramos a materialização de um ambiente de caráter protofascista que deságua no resultado das eleições de 2018, a este propósito, conferir a seção “Poemas de maldizer” onde também aparecem invectivas contra a brancocracia; por fim (3), poemas que escrevi até meados da década de 1980 e que ficaram de fora do meu primeiro livro Homem ao Rubro (1983), entretanto, ao recuperá-los aos guardados, concluí que ainda funcionavam em termos estéticos e que compensava o risco de trazê-los à superfície, porém se eu estiver enganado, então que restem aqui – os poemas da seção “O arco dos vinte anos” – a título de registro de um momento, por assim dizer, formativo e onde se iniciava minha aventura ao desconhecido mundo da invenção verbal no qual importam tanto as irrupções quanto as margens.

Capa do livro. Foto: Kotter Editorial/Divulgação

Os dois extremos de Tornaviagem

Ricardo Silvestrin

Tornaviagem, do poeta Ronald Augusto, é um livro que se move entre dois extremos. Um desses extremos está no final do volume, nos poemas resgatados da produção, até então inédita, do Ronald do início dos anos 1980. No texto onze da série “homem ao rubro, aparas”, nos dois últimos versos, lemos “subtrair de si a/tapeada coloração do significado”.

Homem ao Rubro, de 1983, marca o início de um tipo de poesia que o nosso poeta iria desenvolver, percorrendo um caminho singular e inventivo na criação poética brasileira. As “aparas” referem-se aos poemas que tinham ficado de fora do livro. O trecho citado acima aponta para um traço fundamental nessa trajetória: a opção por uma poesia não discursiva. A subtração do que no discurso, seja ele poético ou não, é visto como logro. O grande engodo é crer no poder comunicativo e absoluto do significado.

Mais adiante, no poema seis da série “não são nomes para essas coisas”, há dois caminhos para a linguagem poética e para o discurso: “quando cremos que as palavras são realmente os objetos/ que designam” e “quando nos convencemos de que/as palavras são melhores do que os objetos”.

O retorno dessas aparas (e aqui o título do livro, Tornaviagem, se adequa perfeitamente a essa volta dos textos que ficaram lá atrás) marca a âncora do extremo não-discursivo, como se tivéssemos um eixo horizontal que vai do discurso ao não discurso. Esse do final é o polo não-discursivo. É o que domina uma grande parte da poesia do Ronald até hoje. É o que estreia em 1983 com Homem ao Rubro. As aparas trazem tanto seu texto em que o leitor se perde entre pistas falsas de significados, texto-labirinto, quanto essas colocações citadas aqui, espécies de micropoéticas do poeta.

No outro extremo dessa linha horizontal, temos os poemas com significados à mostra, sem nenhum pudor de encarar o discurso. O ponto mais ao extremo está num texto em que o título parece apontar para o risco de o discurso dominar a ponto de inviabilizar a própria existência do poema: “não é bem um poema, mas vai assim mesmo”.

Entre esses dois extremos, aparecem as tentativas de moldar o discurso numa forma fixa: “quadras ao gosto popular”, “octassílabos”, “decassílabos”. Poemas que já trazem no título os limites para conter a discursividade. Mas outros elementos estéticos, como o corte dos versos, a repetição como refrão ou como conjuntos de palavras que retornam em diferentes versos, os termos que retomam o assunto e assim criam um ritmo, tudo isso, que são recursos do verso livre, também sinalizam, como espécies de placas de estrada, os caminhos por onde o discurso deve passar e, assim, se realizar como um poema.

Se, no início dos anos 1980, Ronald precisava subtrair, agora ele precisa somar. É preciso se estender, fazer aparecer, dizer em alto e bom som. Mas um poeta-crítico como ele também se vale do discurso como crítica dos discursos. Assim, as falas cristalizadas da retórica racista são postas a nu em sua lógica perversa e reiterada. Os impasses das ideologias da esquerda à direita se desvelam. Os chavões da poesia, da política, do ufanismo nacionalista, todos acabam se equivalendo sob o olhar do poeta que a tudo questiona e denuncia. E, assim, os dois pontos extremos da linha horizontal, discurso e não discurso, se aproximam e se transformam mais uma vez na poesia sempre renovadora do poeta Ronald Augusto.

Mesmo falando do noticiário e das mazelas que nos assolam nestes tempos de retrocesso (mais uma vez o retorno, Tornaviagem), não crê que as palavras são os objetos, os objetos de que tratam, e nos devolvem palavras melhores do que esses terríveis objetos.


Ricardo Silvestrin é escritor, compositor e mestre em Literatura pela UFRGS. Na poesia, publicou, entre outros, O Menos Vendido, Typographo e Sobre o que. Na prosa, Play, contos, e O Videogame do Rei, romance. Recebeu por cinco vezes o Prêmio Açorianos de Literatura.

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