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Tudo ao mesmo tempo agora. Ou algo parecido

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Tudo ao mesmo tempo agora. Ou algo parecido Foto: Warner/Divulgação

Logo no início de Tenet, depois de uma frenética sequência dentro de um teatro lotado cheia de tiroteios, lutas e explosões, o Protagonista – assim mesmo, com maiúscula e sem nome próprio – é alertado por uma cientista: “Não tente entender. Sinta”. O aviso é dado ao agente secreto interpretado pelo ator John David Washington, mas também se endereça aos espectadores que vão topar com balas voltando para dentro dos canos das armas, prédios que explodem e em seguida implodem, perseguições de carro em marcha à ré, barcos navegando para trás. A primeira sentença da dica é apropriada: não vale a pena quebrar a cachola tentando seguir inutilmente a evolução – ou involução, dependendo do sentido em que se ande – da trama pseudocientífica enosada criada por Christopher Nolan: provavelmente nem o próprio roteirista e diretor sabe como explicar exatamente os acontecimentos de seu grandiloquente filme. Nisso público e personagens parecem estar em pé de igualdade: estão todos perdidos com tantas idas e vindas no tempo, tudo ao mesmo tempo agora. Mas o principal problema é que Tenet não dá bola para o próprio conselho e passa o tempo inteiro – em Nolan, sempre é uma questão de tempo – tentando explicar o indecifrável, o que atrapalha o espectador que desejar seguir a segunda parte da recomendação da moça de jaleco branco: apenas deixar-se envolver pela história e pelo clima inusitado da sincronicidade temporal.

O título Tenet – palavra que em inglês significa tanto princípio quanto dogma – é um palíndromo que simboliza a premissa do filme: uma tecnologia consegue inverter o fluxo de entropia de objetos e pessoas, tornando possível deslocar-se no tempo. Esse conhecimento caiu nas mãos de um criminoso bilionário russo (Kenneth Branagh), e a CIA convoca o Protagonista para se aproximar do supervilão por meio da mulher dele (Elizabeth Debicki), contando com a ajuda de um espião de mil e uma utilidades (Robert Pattinson). Tenet está sendo lançado como o vistoso chamariz para levar as pessoas de volta aos cinemas, em um ano no qual praticamente todas as superproduções hollywoodianas tiveram suas estreias canceladas. Nolan queria que a Warner lançasse o filme no dia 17 de julho, no auge da pandemia do novo coronavírus. A produtora não cedeu e adiou a estreia internacional – no Brasil, a produção entra em cartaz nesta quinta-feira (29/10), adiantando-se a Sem Tempo para Morrer, novo título da franquia 007 cujo lançamento foi postergado para 2 de abril de 2021.

Um dos cineastas mais inventivos e respeitados da indústria cinematográfica da atualidade, Nolan confessadamente quis fazer um monumental filme de espionagem à sua maneira em Tenet. A trama tem todos os ingredientes da série 007: um herói destemido, boa-pinta, cosmopolita e de terno bem cortado – interpretado pelo carismático filho do astro Denzel Washington, que despontou em Infiltrado na Klan (2018), de Spike Lee –, um antagonista megalômano que quer o mundo a seus pés, uma femme fatale sofisticada e um parceiro do mocinho engraçadinho e cool; perseguições vertiginosas em cartões postais internacionais; armas mirabolantes e coreografias improváveis de lutas. Mas toda essa pirotecnia parece não ser suficiente para as ambições artísticas de Nolan: ele precisava acrescentar profundidade e filosofia ao entretenimento, instigando o espectador a também pensar, além de só comer pipoca – da maneira que conseguiu fazer com admirável sucesso em títulos como Amnésia (2000), Batman: O Cavaleiro das Trevas (2008) ou A Origem (2010). O problema é que Tenet não convence como um James Bond cabeça: se em A Origem e mesmo em Interestelar (2014) as divagações oníricas e científicas são bem aproveitadas como trampolim para mergulhos narrativos ousados que confrontam noções como realidade e sonho, tempo e espaço, em seu novo longa o realizador abandona o fio no meio do labirinto, deixando todos vagando atordoados em meio a uma profusão de teorias explicadas pela metade e paradoxos insolúveis – jogados em cena pelo agente Neil, improvável tipo de charme nonchalance que une doutorado em física, domínio da língua estoniana e desenvoltura no bungee jump. Não ajudam em nada também os diálogos pomposos, as frases feitas e os clichês típicos de aventuras de espionagem internacional – que podem ter um charme camp na boca de tipos como o vilão Goldfinger, mas que não se harmonizam com o tom solene proposto em Tenet.

A manipulação do tempo é uma das essências do cinema, e Christopher Nolan tem demonstrado maestria na exploração desse recurso da linguagem fílmica em virtuosismos narrativos como o impressionante Dunkirk (2017). Em Tenet, porém, o excesso de maneirismo faz o projeto naufragar a meio caminho entre a pretensão discursiva e o divertimento comercial. Diferentemente de outros filmes do realizador, os voos especulativos de Tenet não encontram lastro em uma dimensão humana palpável: o herói não sabe a razão por que embarcou na jornada, o antagonista é movido por uma agenda sem sentido, as ações têm causas e consequências difusas e contraditórias. E aqui vai outro alerta: a menos que tenha uma daquelas catracas temporais do filme, o espectador deve estar preparado para investir em Tenet duas horas e meia irrecuperáveis.

Tenet: * *

COTAÇÕES

* * * * * ótimo     * * * * muito bom     * * * bom     * * regular     * ruim

Assista ao trailer de Tenet:

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