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“Il Boemo” conta trajetória de compositor tcheco em tom de ópera

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“Il Boemo” conta trajetória de compositor tcheco em tom de ópera Bonfilm/Divulgação

Escolhido como representante da República Tcheca no Oscar de filme internacional, Il Boemo (2022) entra em cartaz nos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (21/9). O drama biográfico conta a história do talentoso músico tcheco Josef Mysliveček (1737 – 1781), amigo e mentor de Mozart que decide se mudar para Veneza a fim de conquistar o sucesso como compositor de óperas. O diretor Petr Václav veio ao Brasil nesta semana para acompanhar a pré-estreia do longa no Rio de Janeiro, no Festival Ópera na Tela, e também em São Paulo.

A trama começa em 1764, acompanhando Mysliveček – interpretado pelo ator e músico Vojtech Dyk – em sua tentativa de firmar-se na cena artística veneziana. Contudo, a despeito de seu talento, “Il Boemo”, como era chamado, não consegue alcançar o reconhecimento desejado.

Ministrando aulas de violino, Mysliveček começa a circular nos círculos aristocráticos e burgueses da sociedade culta e libertina, iniciando uma ligação amorosa com uma mulher da corte. Sua carreira profissional começa então a ascender, aproximando-o do sonho de montar uma ópera consagradora. Mas a vida de Mysliveček será marcada por episódios que vão comprometer sua trajetória.

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Josef Mysliveček foi muito admirado pelo jovem Mozart, mas depois caiu no esquecimento. Seus encontros, aventuras amorosas, sucessos e dificuldades pessoais são retratados em Il Boemo – cuja produção teve o cuidado de reconstituir com grande precisão os ambientes, figurinos, costumes, comportamentos do público e especificidades dos cantores da época em que se passa a história.

Em 2016, Petr Václav dirigiu o documentário Confissões de um Homem Desaparecido, sobre a vida do compositor tcheco, que recebeu o FIPA de Ouro (Festival Internacional de Programas Audiovisuais da França) e foi o ponto de partida da ficção Il Boemo. Uma das principais fontes de pesquisa do diretor para construir o personagem de Mysliveček e traçar seu perfil psicológico foram as correspondências trocadas entre ele e Mozart.

“Considero que a própria vida muitas vezes é mais louca, mais absurda, mais hilariante e mais comovente do que a maior parte das histórias inventadas. Foi por esse motivo que procurei fazer uma pesquisa profunda, na esperança de fazer um trabalho que fosse dramático, narrativo e, contudo, fiel a Mysliveček e à sua época”,  explica o diretor.

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O realizador fez questão que o protagonista do filme também fosse músico, para que “fosse autêntico em sua relação com a música, que sentisse realmente as coisas, que não apenas fingisse ter sensibilidade que na verdade não possui”. Para executar o papel de maestro e atuar regendo a orquestra, o ator Vojtech Dyk acompanhava os movimentos do maestro Václav Luks, que fora da cena fazia os movimentos da regência. 

Luks – que também participou de Confissões de um Homem Desaparecido – ganhou em 2018 o prestigiado prêmio Diapason d’Or por suas gravações de obras de Zelenka, outro compositor tcheco recentemente redescoberto, e foi escolhido para a direção musical de Il Boemo com o grupo Collegium 1704, regendo solistas excepcionais como os cantores Philippe Jaroussky, Raffaella Milanesi, Emöke Baráth e Simona ŠaturováIl Boemo integrou a competição oficial do Festival de San Sebastián de 2022 e recebeu seis Leões Tchecos: melhor filme, diretor, figurino, cenografia, maquiagem e som.

Na entrevista exclusiva a seguir, o diretor e roteirista Petr Václav revela detalhes e bastidores da produção de Il Boemo, situa o papel de Josef Mysliveček na história da música erudita e da ópera, lembra os paralelos entre o compositor tcheco e Mozart, comenta acerca de suas referências cinematográficas e artísticas e adianta que seu próximo filme também será ambientado no final do século 18.

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Antes de “Il Boemo”, você fez um documentário sobre a produção da ópera “L’Olimpiade”, de Josef Mysliveček. Como você conheceu e se interessou pela vida e obra do compositor?

Esse negócio de documentário é mais complicado que isso, vamos começar do começo. Em primeiro lugar, tive a ideia de fazer um filme de ficção (ou uma cinebiografia, se quiser) sobre um imigrante que deixa a sua província e os seus pequenos confortos de burguês provinciano e que parte para o desconhecido em busca de tornar-se um compositor. Ele vai para a Itália, que é uma hiperpotência no campo do seu desejo: música e ópera. Para escrever esse roteiro, li toda a correspondência possível, relatos de viagens, memórias, literatura da época, filósofos e até toda a literatura médica impressa no século 18 sobre doenças venéreas. Claro, li Casanova e a sua História da Minha Vida, a correspondência da família Mozart e a de Maria Antonieta, a rainha da França, com a sua mãe. E, claro, a bíblia dos musicólogos, o livro de Charles Burney, que viajou por todos os países da Europa para testemunhar a cultura musical e trazer retratos dos compositores do seu tempo. Falta de sorte, esse livro não fala de Mysliveček, menciona-o nas margens, nada mais. Passei um ano lendo.

Ao mesmo tempo, consultei musicólogos, historiadores e principalmente o maestro Václav Luks. Ele é um músico muito popular e conhecido no mundo da música barroca. Foi com ele que comecei a procurar a música do Mysliveček. Fomos juntos ao arquivo, fotocopiamos as partituras. Ele tocou para mim no piano, cantou as músicas, explicou-me a orquestração. Mais tarde, quando eu já estava escrevendo o roteiro de Il Boemo, Václav Luks veio à minha casa com a partitura de L’Olimpiade, tocou para mim, cantou no piano e me disse: “É a melhor ópera de Mysliveček, vou querer encená-la.” Eu disse: “Se você dirigir, farei um documentário sobre isso”. Foi assim que aconteceu. O documentário Confissões de um Homem Desaparecido permitiu-me ver Václav Luks trabalhar com os intérpretes, mergulhar na música de Mysliveček. É um filme por si só, mas também é um filme que me permitiu preparar-me para a filmagem de Il Boemo.

Você acredita que a importância de Mysliveček na história da música está sendo revista hoje?

Seu lugar na história da música está claro hoje, considerando seu trabalho com o recitativo acompanhado que utiliza com uma força psicológica rara para a sua época. E a influência que teve em Mozart. Mysliveček não é um revolucionário, ele completa o gênero da ópera séria. Porém, ouvimos em sua música premissas do bel canto ou mesmo de Donizetti. Acredito que meu filme contribuiu muito para tirar definitivamente esse homem do esquecimento. O filme será visto em vários países. Gravamos sua música, que foi publicada em CD pela Warner Classics sob o título Il Boemo. Não sei qual será sua trajetória nas salas de concerto e se suas óperas serão executadas, mas, de qualquer forma, ele foi trazido de volta do esquecimento.

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Por que Mysliveček foi esquecido por tanto tempo?

Na era de Il Boemo, a cada temporada, enfeitava-se um antigo libreto de ópera com músicas novas e passava-se para outra coisa. Essa é a primeira razão. As óperas não tinham uma segunda vida. Às vezes – e esse também é o caso de Mysliveček – árias de óperas eram retomadas e cantadas com outro texto nas igrejas. Mas o nome do autor desaparecia. Essa é a primeira razão do esquecimento do nosso compositor. A segunda razão é geral e diz respeito também a outros compositores: a ópera séria como gênero caiu em desgraça com a queda da realeza, é um gênero que foi muito mal visto nos séculos 19 e 20, e essa tendência continua a persistir. Aqueles que compuseram para esse gênero negligenciado foram esquecidos junto com ele. No entanto, existem obras extraordinárias que foram escritas para óperas sérias.

A terceira razão é a sífilis. Il Boemo morre de doença venérea, por isso é considerado uma pessoa de vida dissoluta, moralmente repreensível. A quarta razão: nunca casou, não teve filhos, não tinha ninguém que defendesse a sua posteridade. Quinta razão: a musicologia alemã favorecia Mozart e não queria ser sobrecarregada com o seu compatriota eslavo. A sexta razão: Mysliveček permaneceu mais conhecido na Boêmia, na Tchecoslováquia, seu país de origem. Mas o comunismo não queria falar muito de um compositor que trabalhava para a nobreza italiana, preferia figuras mais recentes que pudessem ser utilizadas como compositores “nacionais” que defendiam a nação e a pátria. Portanto, não houve interesse para Mysliveček. A Tchecoslováquia totalitária e russificada (1948 – 1989) era de terrível mediocridade intelectual. Além disso, o Estado não permitiu que musicólogos tchecos acessassem livremente arquivos no exterior, nesse caso na Itália. Ninguém se importava com Josef Mysliveček e seu trabalho naquela época. E quando o país se tornou livre, em 1989, voltou-se mais para o dinheiro do que para a cultura. Levamos 10 anos, meu produtor e eu, para conseguir viabilizar o projeto e arrecadar fundos para dar vida a esse roteiro.

Depois, quando o país se tornou livre, em 1989, os tchecos estiveram em contato com o passado recente, como o totalitarismo, a Shoah – que o Estado comunista-soviético manteve em silêncio –, a Segunda Guerra Mundial, as relações entre os tchecos e os alemães etc., assuntos que foram negados ou completamente distorcidos pelo comunismo tchecoslovaco. Essas são as múltiplas razões que mergulharam Mysliveček no underground da história musical.

Gostaria de dizer à margem que quando falo do “comunismo” tchecoslovaco tenho em mente uma experiência específica, a experiência de um Estado totalitário que obedeceu à vontade da União Soviética, que veio invadir com tanques meu país de origem um pouco da mesma forma – muito menos violenta – que os militares vieram em tanques e com helicópteros e com uma ideologia completamente oposta ao Chile ou à Argentina. A minha crítica ao comunismo tchecoslovaco não tem qualquer ligação direta com os seus partidos comunistas aqui na América Latina, que desempenharam um papel completamente diferente. O que chamamos de “comunismo” ou “socialismo” no meu país e no seu não é comparável.

O que o levou a convidar o ator e músico Vojtech Dyk para estrelar “Il Boemo”?

O fato de ele ser músico. Ele sabe tocar piano, ler partitura, sabe reger orquestra. Tudo isso foi fundamental para mim, além de suas habilidades de atuação.

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Como foi trabalhar em “Il Boemo” com o maestro Václav Luks e cantores ao nível de Philippe Jaroussky, Emöke Baráth e Raffaella Milanesi?

Václav Luks foi meu principal cúmplice do começo ao fim. Foi com ele que descobri a música de Mysliveček. Foi também com ele que pude discutir muitos dos assuntos que tive que investigar para escrever o roteiro. Escolhemos juntos a música do filme e os artistas. Ele veio até a sala de edição para nos ajudar a sincronizar melhor as cenas musicais. Ele nos ajudou a encontrar financiamento para o filme. Ele participou da mixagem. Foi uma colaboração muito importante. Quanto a Raffaella Milanesi, Krystian Adam e Sophie Harmsen, já nos conhecíamos durante as filmagens do meu documentário Confissões de um Homem Desaparecido. Raffaella e Sophie conheciam perfeitamente as músicas que iriam cantar novamente no filme, já conheciam muito bem a psicologia dos personagens. A colaboração com Jaroussky e Baráth foi muito ocasional: Philippe Jaroussky só tinha três dias por ano para nos dedicar. Eu o vi uma vez durante a gravação do CD em Praga, depois diretamente no local, durante as filmagens. Entretanto, escrevi-lhe – como a todos os outros – vários e-mails em que detalhava todas as ideias relativas às suas músicas. No local, usei a câmera montada no ombro para dar a eles o máximo de liberdade possível. Queria que eles não tivessem que pensar se vão dois metros mais para a direita ou para a esquerda. Eu não queria limitá-los assim. A câmera estava lá para eles, não eles para a câmera. Deu uma boa flexibilidade na maneira de filmar. Eu sabia que a maioria do público desconfiava da ópera e não queria fazer um filme apenas para amantes da ópera. Eu queria quebrar barreiras. Por isso filmei a ópera como o resto do filme, simplesmente, sem estabelecer entre os intérpretes e o espectador algum tipo de filtro de “dignidade” ou “arte suprema”. Queria capturar o lado físico, quase desportivo, da ópera.

“Il Boemo” destaca-se pela sua preciosa reconstrução de época e pelas belas locações. Como foi o trabalho e a importância da direção de arte e da produção do filme?

Pensei primeiro que poderia tentar ter um diretor artístico que reunisse e harmonizasse o trabalho do cenógrafo, do figurinista, do diretor de fotografia, do maquiador. Mas entendi que não precisava disso, que o diretor artístico era eu. Eu sabia exatamente o que queria. Tudo o que não consegui é simplesmente uma questão de dinheiro. Se você descobrir um lustre ou uma cadeira problemática no filme, não é por minha estupidez ou descuido, mas simplesmente pela impossibilidade de oferecer um objeto melhor. Por outro lado, existem belos objetos verdadeiramente datados dos séculos 17 e 18. É uma aventura juntar tudo e destacar os melhores objetos, as melhores decorações. E, claro, o que dá graça aos objetos e decorações é a luz. Queria que fosse o mais natural possível, com um toque simples, quase documental, para dar ao filme a marca da verdade. A grande vantagem das velas é que elas criam uma luz mais verdadeira, natural e maravilhosa.

Trabalhei intensamente com um grande figurinista italiano, Andrea Cavalletto. É um homem de grande cultura e um grande conhecedor do século 18. Compartilhei com ele todas as referências que acumulei. Trabalhamos juntos e foi um trabalho muito agradável e feliz. O filme teve dificuldades financeiras e também foi filmado durante a pandemia. Na Itália e na República Tcheca. O trabalho do decorador teve então que ser dividido entre um decorador napolitano, Luca Servino, e uma decoradora tcheca, Irena Hradecka. Depois, houve cenas que eu próprio organizei – por questões orçamentais e de saúde –, fui de certa forma o meu próprio decorador, e aproveitei muito os locais históricos onde pude organizar tudo ao mesmo tempo, com ajuda de um assistente e onde pedi móveis emprestados e objetos dos proprietários. Complementei tudo isso com os objetos planejados e móveis que levamos em nossos caminhões.

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“Il Boemo” inescapavelmente remete a filmes como “Don Giovanni”, de Joseph Losey, “Barry Lyndon”, de Stanley Kubrick, e “Amadeus”, de Milos Forman. Quais foram as referências cinematográficas, artísticas e históricas que você utilizou no seu filme?

Você so menciona filmes magníficos. Conheço-os muito bem, diria de cor, com exceção de Losey, que só vi duas vezes. Estudei muito o Amadeus porque tinha certeza que as pessoas me comparariam com ele, principalmente porque Forman é tcheco. Além disso, vi a filmagem de certas cenas externas quando era estudante do ensino médio, porque foram filmadas na frente da minha escola. Admiro Barry Lyndon, já o vi não sei quantas vezes. Poderíamos também citar Ligações Perigosas, de Frears, e Valmont, de Forman. Esses filmes são muito importantes para mim, mas paradoxalmente são uma referência menos importante em comparação com a pintura e a literatura. Porque a pintura dá a liberdade de se inspirar. No final das contas, você pode roubar muito da pintura, mas não deve copiar os filmes de outras pessoas. É por isso que a minha relação com os filmes que você cita sempre foi absolutamente clara: não queria copiá-los, nem venerá-los, nem desafiá-los ou mesmo competir com eles. Não se brinca com referências. Queria estar muito atento a esses filmes porque sabia que me iria enquadrar nessa família de obras históricas. Mas eu queria seguir meu próprio caminho. E sobre Mozart, eu não queria dizer a mesma coisa que Forman em Amadeus. Tenho muito respeito por esse filme que zomba totalmente das realidades históricas e que cria a sua própria verdade artística. Mas, 35 anos depois, eu queria levantar questões completamente diferentes. Amadeus fez muito por Mozart na época. Mas o nosso conhecimento do século 18 e da música barroca é hoje muito maior que há 35 anos. No filme de Forman, Mozart é um gênio maluco, e foi um gesto simpático numa época em que o público mais velho ainda ficava chocado com esse olhar um pouco provocador e irreverente. Mozart é visto como um cara maluco que escreve sob o ditado de Deus, cercado de idiotas, pessoas medíocres e maliciosas. Temos a impressão de que ele é o único que escreve músicas muito bonitas. O Mozart que vemos no meu filme é um grande talento que ganha a vida negociando com outras pessoas, que quer conhecer Mysliveček porque quer trocar com ele, aprender com ele. Mostro que a obra de um compositor é uma história de trocas, de múltiplas influências, de trabalho mais que de inspiração divina. Quando fazemos um filme sabemos que fazemos parte da história do cinema, que somos precedidos por outros e que seremos posteriormente sepultados sob a montanha da criação que acontecerá depois de nós. A única coisa importante é fazer um filme que se encaixe no seu tempo, e se possível contar algo que ninguém contou ainda. E quanto ao resto, aconteça o que acontecer.

Quais são seus próximos projetos?

Tenho projetos bem contemporâneos e até futuristas. Mas não quero sair ainda do século 18. Gostaria de usar tudo que aprendi com Il Boemo e tudo que não consegui colocar no filme. Estou preparando outro filme ambientado na década de setenta do século 18. Mas desta vez em francês.

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Il Boemo: * * * *

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