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O que acontece quando os patrões saem da sala?

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O que acontece quando os patrões saem da sala? Foto: Vitrine Filmes/Divulgação

O filme Três Verões, de Sandra Kogut (diretora de Mutum e Campo Grande), estava com tudo pronto para ser lançado nos cinemas no dia 19 de março quando as salas tiveram que ser fechadas em todo o Brasil por conta da pandemia de Covid-19. Após cinco meses de espera, o público finalmente poderá conhecer Madá, a protagonista da história, interpretada por Regina Casé: o longa será lançado em drive-ins nesta quinta-feira (3/9). Logo após, a partir de 16 de setembro, Três Verões estreia no Telecine, Now, Vivo Play e Oi Play.

A cineasta queria falar sobre o que vem acontecendo no Brasil nestes últimos anos por meio de personagens que estão geralmente em um canto do quadro – ou fora da tela. Os figurantes, os invisíveis. O que acontece com aqueles que orbitam em torno dos ricos e poderosos quando a vida dos patrões desmorona? De que maneira eles sofrem as consequências?

Pelo olhar de Madá, uma caseira em um condomínio de luxo à beira-mar, Três Verões mostra o desmantelamento de uma família em função dos dramas políticos que abalaram o país. O filme se passa ao longo de três anos consecutivos (2015, 2016 e 2017), sempre na última semana do ano, entre o Natal e o Ano-Novo, na luxuosa casa de veraneio da família. O personagem de Madá está entre dois mundos – ela é dona da casa sem ser: Madá manda nos empregados, mas é também submissa aos patrões.

Foto: Vitrine Filmes/Divulgação

O elenco central conta ainda com Rogério Fróes, Otávio Müller e Gisele Fróes. A produção estreou em 91 salas na França, após a reabertura dos cinemas do país em junho, e também foi lançado na Espanha, na Itália, na Holanda e na Polônia. O filme teve estreia mundial no Festival de Toronto e foi exibido pela primeira vez no Brasil na 43ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Também passou pelo Festival do Rio e no Antalya Golden Orange Film Festival, na Turquia – onde Regina Casé ganhou ois prêmios de Melhor Atriz por seu papel.

Na entrevista exclusiva a seguir, Sandra Kogut fala de Três Verões, da parceria com Regina Casé, do futuro do cinema e do Brasil: “O que será que vai sobrar do Brasil quando essa onda de destruição finalmente passar? É assustador”.

Sandra Kogut. Foto: Vitrine Filmes/Divulgação

Três Verões radiografa a singular ambiguidade das relações de classe do Brasil, em que uma harmonia cosmética disfarça sem muita eficácia um abismo e uma estratificação social que não se deixa silenciar por completo nunca. Como foi a redação do roteiro do filme?

Os anos durante os quais o filme se passa (2015, 2016 e 2017) foram – como todos sabemos – períodos de intensos dramas políticos no Brasil (que depois só se agravaram ainda mais, diga-se de passagem. Na verdade o filme é um retrato do momento imediatamente antes do que aconteceu em 2018, e os sinais do que vinha pela frente estão todos ali). O país inteiro acompanhava pela mídia os escândalos de corrupção, as prisões espetaculares, um pouco como se estivesse assistindo a uma novela em tempo real. Dizia-se na época – de brincadeira, mas nem tanto – que, se antes os brasileiros costumavam conhecer de cor os nomes dos 11 jogadores da seleção, agora todo mundo sabia os nomes dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal. Mas a gente nunca via na mídia os personagens que orbitam em torno desses ricos e poderosos, que de alguma maneira dependem deles, e que sofrem as consequências de tudo isso. Eles nunca apareciam. Eram no máximo figurantes ou então invisíveis mesmo, estavam fora de quadro. Eu queria falar deles, saber o que estava acontecendo com eles. Me perguntava: onde estão eles? Quais são as consequências para os empregados quando seus patrões vão para a cadeia? Assim nasceu o filme. Ele conta o outro lado da história. O lado que nunca saía nos jornais, o lado do avesso. O ponto de vista dos invisíveis. O que acontece quando os patrões saem da sala?

A história é toda construída em torno de Madá. A personagem foi escrita tendo Regina Casé em mente? O que a atriz acrescentou à protagonista para além do que já estava escrito no roteiro?

Regina é uma amiga e parceira da vida toda. Nos conhecemos há uns 30 anos e já trabalhamos juntas muitas vezes ao longo desse tempo. Em 1995 fiz um curta-metragem com ela, chamado Lá e Cá. Desde então nos prometemos fazer um longa juntas. Quando morava na França cheguei a desenvolver um projeto que tinha ela como protagonista, mas acabei não fazendo. Ao longo dos anos, nos filmes que eu fiz, não via um papel que me parecesse ser para ela. Mas, desta vez, sim, me pareceu o papel certo, na hora certa. Convidei Regina logo de início. Ela trouxe muito ao personagem. Além do seu imenso talento, é uma pessoa muito observadora, e que observa sem julgar. Nos anos 1990, viajamos pelo Brasil juntas fazendo um programa de TV que se chamou Brasil Legal. Ali vimos tantas Madás… Tudo que escrevo é sempre inspirado da experiência, acho que para muita gente é assim.

Um dos destaques dramáticos do filme é a crescente importância que o personagem de Rogério Fróes vai assumindo e sua conexão com Madá. Como foi a interação entre o ator e Regina Casé?

Esse encontro entre os dois é das coisas mais emocionantes do filme. Ambos são personagens marginais, são figurantes na grande História, mas por motivos diferentes. O personagem do Rogério é uma espécie de reserva moral do filme, o único personagem humanista, professor, que gosta de livros… Não existe mais lugar para ele. Os dois se veem presos ali naquela casa como dois náufragos numa ilha. Se encontram na sua exclusão, na sua marginalidade, e nas suas qualidades humanas. Trabalhar com o Rogerio foi uma emoção. Uma honra. Eu me lembro dele da minha infância. A relação entre eles foi maravilhosa, assim como com todos os outros. O set desse filme – que a gente fez com pouco dinheiro, pouquíssimo tempo – foi de uma grande energia coletiva. Todo mundo queria fazer, queria contar essa história. Todos toparam trabalhar em condições especiais, apertadas, foi uma força coletiva. Rimos e choramos juntos muitas vezes.

Rogério Fróes e Regina Casé. Foto: Vitrine Filmes/Divulgação

Em Três Verões, os empregados – e, claro, particularmente Madá – enfrentam as adversidades com maior desenvoltura do que os patrões. Comente por favor a opção de evitar a vitimização dos explorados no enredo do filme, investindo no humor e na crítica social irônica.

Madá é uma força da natureza. Não desiste, é criativa, inteligente, mas não teve acesso a quase nada. É uma lutadora. Quanta gente como ela não vemos no Brasil? São esses os personagens que mais me comovem. Ela não é nenhuma santa, é uma sobrevivente. Muitas vezes levamos um susto quando vamos conhecer de perto a história pessoal, as tragédias dessas pessoas… São personagens invisíveis em muitos sentidos, a invisibilidade tem muitas camadas. O filme critica esse projeto de Brasil neoliberal, onde é cada um por si, onde todo mundo quer ser patrão, todo mundo tem que se virar. Onde venderam essa ideia do empreendedorismo. Por isso Madá é um personagem entre dois mundos: é empregada dos patrões e chefe dos empregados. É emblemática desse projeto de país, onde o coletivo desapareceu. Todos no filme falam de dinheiro o tempo todo, ricos e pobres, seja por ganância, seja por desespero. E ao mesmo tempo Madá é agregadora, tem princípios humanos, tem sabedoria. É complexa, humana.

Regina Casé foi muito elogiada e premiada pelo papel da cativante doméstica de uma família da alta classe em Que Horas Ela Volta?. Você não temeu que houvesse uma repetição de registros em Três Verões? Quais as diferenças fundamentais entre as duas personagens?

São personagens totalmente diferentes, quase opostos. No Que Horas… a personagem é aquela empregada submissa, quase de uma outra época. Madá é altiva, ela se garante, é mais inteligente que a patroa. Regina disse uma vez numa entrevista que ninguém faz a mesma pergunta quando uma atriz interpreta duas vezes uma patroa. Achei que ela definiu bem! É como se os empregados estivessem condenados a ser sempre tipos, e não personagens inteiros, com suas complexidades e particularidades. Mostra como é raro ter domésticas protagonistas, né? Se fosse mais frequente não estaríamos nos fazendo essa pergunta…

O fechamento dos cinemas na semana em que Três Verões iria estrear no final de março desarticulou toda a estratégia de lançamento e distribuição do filme. Como você vê o futuro imediato do mercado audiovisual com a predominância cada vez maior das plataformas digitais e uma perspectiva incerta para as salas de cinema?

O Três Verões será um belo estudo de caso do que aconteceu com o cinema na pandemia. Estávamos na boca do lançamento, suspendemos tudo seis dias antes. Na França ele foi lançado, ficou quatro dias em cartaz, e fechou tudo. Quando os cinemas reabriram na França, ele voltou em cartaz em 91 salas. Foi sensacional. Em países que controlaram melhor a pandemia ele está sendo lançado nos cinemas: Holanda, Espanha, Itália… Aqui no Brasil ficamos numa situação complicada. Como fazer? Penso que existem muitas maneiras de ver um filme. A sala de cinema tem algo que só ela tem. Ali temos uma experiência individual e coletiva ao mesmo tempo. Parece que aquele filme foi feito só pra você, e de repente a sala inteira ri ou chora ao mesmo tempo. É mágico. Mas neste momento não é possível no Brasil. O renascimento dos drive-ins foi uma ideia muito boa que surgiu na pandemia e se espalhou por muitos países. Acho genial. E o streaming cresceu. É preciso ir lidando à medida em que as coisas vão acontecendo. Estamos descobrindo o que fazer. Pessoalmente torço para que meu filme chegue no maior numero de pessoas possível… Esse é o sonho.

Por falar em instabilidade, que avaliação você faz do Brasil de hoje do ponto de vista social e político?

Terrível o que está acontecendo. Um governo da morte, da destruição. O que será que vai sobrar do Brasil quando essa onda de destruição finalmente passar? É assustador.

Três Verões: * * * 

COTAÇÕES

* * * * * ótimo     * * * * muito bom     * * * bom     * * regular     * ruim

Veja o trailer de Três Verões:

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