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“Retratos Fantasmas” registra o apagamento e a permanência

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“Retratos Fantasmas” registra o apagamento e a permanência Wilson Carneiro da Cunha/Divulgação

Depois de ter sua estreia mundial no Festival de Cannes e brasileira no recente Festival de Gramado – onde foi efusivamente aplaudido fora da competição –, o filme Retratos Fantasmas (2023) entra em cartaz nos cinemas nesta quinta-feira (24/9). O longa dirigido, escrito e contado por Kleber Mendonça Filho parte de imagens de arquivo familiares, da evolução urbanística de Recife e dos cinemas antigos da capital pernambucana para criar uma instigante e comovente narrativa que costura memória pessoal, história coletiva e cinefilia.

O diretor de O Som ao Redor (2012), Aquarius (2016) e Bacurau (2019) participou em Porto Alegre de uma sessão de pré-estreia seguida de debate sobre seu novo filme na noite desta quarta-feira (23/8), na Cinemateca Capitólio. “Eu gosto de trabalhar no lançamento dos filmes, de estar nas sessões, ainda mais num filme sobre as cidades e, especialmente, sobre o ato de ir ao cinema”, afirma o cineasta.

Retratos Fantasmas estreia simultaneamente no Brasil e em Portugal. Em outubro, será lançado nas salas da Espanha e, em novembro, nos cinemas da França e Estados Unidos.

Vitrine Filmes/Divulgação

O filme já conta com mais de 30 convites para festivais internacionais, incluindo prestigiados certames como o Toronto International Film Festival (TIFF), no Canadá – onde será exibido na categoria Wavelengths, que reúne “filmes que expandem nossas noções sobre cinema” – e na seleção principal do New York Film Festival (NYFF). “Com a carreira que Retratos Fantasmas vem construindo, e com o que ainda será divulgado fora do Brasil, creio que devemos submeter o filme como representante do país no Oscar. Faz parte do trabalho e vamos aonde o filme vai”, vislumbra a produtora Emilie Lesclaux.

No Brasil, a primeira exibição foi na noite de abertura do 51º Festival de Cinema de Gramado, no dia 12 de agosto, em sessão única fora de competição. Retratos Fantasmas marcou a volta de Kleber Mendonça Filho ao evento na serra gaúcha, onde também apresentou seus longas Crítico (2008), O Som ao Redor, Aquarius e Bacurau.

Fruto de sete anos de trabalho e pesquisa, filmagens e montagem, Retratos Fantasmas tem o centro da cidade do Recife como personagem principal, sendo um espaço histórico e humano, revisitado por meio dos grandes cinemas que serviram como espaços de convívio durante o século 20. Lugares de sonho e de indústria – e a relação das pessoas com esse universo é um marcador de tempo para as mudanças dos costumes em sociedade.

Vitrine Filmes/Divulgação

“Palácios de cinema em centros de cidades são comuns a muitos outros lugares do mundo, mas ocorre que eu sou pernambucano, recifense, e parti para mostrar essa geografia da cidade a partir de um ponto de vista pessoal”, aponta Kleber. “Recife é também uma cidade que ainda desfruta de um cinema espetacular como o São Luiz, um palácio de 1952. Hoje, são poucas as cidades no mundo que ainda sabem o que isso representa”, comenta o realizador em relação aos cinemas de rua.

Cerca de 60% do documentário é composto por material de arquivo, com fotografias e imagens em movimento encontradas em acervos pessoais, na produção pernambucana de cinema, de televisão e de instituições como a Cinemateca Brasileira, o Centro Técnico Audiovisual (CTAV) e a Fundação Joaquim Nabuco.

Na entrevista exclusiva a seguir, Kleber Mendonça Filho fala sobre Retratos Fantasmas, processos de trabalho, influências cinematográficas, apagamento e permanência.

Kleber Mendonça Filho. Foto: Victor Juca/Divulgação

Em seus longas de ficção, a memória e uma noção de identidade coletiva sempre aparecem como fontes de resistência à desagregação social e à colonização cultural que ameaçam permanentemente nossas comunidades – sejam lugarejos do interior ou cidades grandes. Em Retratos Fantasmas, o espaço urbano e os cinemas de Recife representam a afirmação de uma história e uma singularidade vítimas do apagamento. Como você avalia a presença dessas questões em sua filmografia em geral e em seu novo filme em particular?

Kleber Mendonça Filho – Tem a ver com meu interesse natural pelo efeito do tempo, que fica bem marcada no cinema. Não apenas a imagem do que o tempo faz com as coisas e as pessoas, mas também com o comportamento, a cultura e a política, de uma certa forma. Tem a ver com o apagamento da vida e da história das pessoas menos favorecidas, do patrimônio cultural e da própria estrutura do mercado do cinema. Parte do filme fala sobre um prédio em Recife que concentrava a distribuição comercial de filmes, em que tudo acabou por causa de novas tecnologias e mudanças do mercado. Dez anos depois, esse prédio está ocupado por pessoas que participam do apagamento dessa história sem nem saber que isso é um apagamento. O fato de a história desse prédio não ter sido registrada é um apagamento, com o administrador atual do prédio falando na minha cara que nunca teve uma empresa de cinema ali, e eu lembro muito bem como era aquele prédio. Isso acontece também na Ucrânia, por exemplo. Há uma estratégia de apagamento do país invadido. Acho isso um tema poderosíssimo. As guerras passam pelo apagamento.

Retratos Fantasmas transborda limites mais estritos do documentário e aproxima-se dos trabalhos em que a cineasta Agnès Varda mistura registros históricos, reflexões sociais e culturais e memórias pessoais em uma narrativa única. Como foi o processo de concepção do projeto e a construção do roteiro do filme?

KMF – Na verdade, o filme não teve um roteiro. Eu tinha certas ideias que nem tinha anotado, mas queria desenvolver desenvolver em um filme. Por exemplo, a presença das calçadas na frente dos cinemas e das pessoas caminhando nelas. Elas dão uma pegada humana da cidade. As pedras portuguesas polidas durante anos por milhões e milhões e milhões de sapatos. Então me pareceu uma boa imagem, principalmente quando a calçada ainda persiste, mesmo quando ela agora está na frente de uma loja e não de um cinema. Eu lembro que, quando primeira loja abriu no lugar do cinema Moderno, eles fizeram uma espécie de instalação, colocando televisores onde era a tela. Depois pararam de fazer isso, mas achei aquilo muito curioso.

Quando você faz um filme, não define quais serão os santos padroeiros, os amigos imaginários, os cineastas e artistas que fizeram filmes semelhantes ao seu no seu passado. Para esse filme, naturalmente se apresentaram Agnès Varda e Manoel de Oliveira. Não significa que eu fiz cópia do que eles já fizeram, mas a presença deles me deu segurança para dizer assim: “Você está em um território em que ele já estiveram, mas agora você faz o seu filme”. Gosto muito do filme Italianamerican, de 1974, do Martin Scorsese, sobre os pais dele. No final das contas, você está fazendo o seu filme. Mas é bom saber que esses amigos imaginários estão lá.

João Carlos Lacerda/Divulgação

A montagem de Retratos Fantasmas é decisiva para dar coerência e fluidez às diversas camadas narrativas e fontes de imagens do filme. Comente a respeito desse trabalho, por favor.

KMF – A montagem foi feita com o Matheus Farias, que é um grande colaborador. É muito curioso porque a entrada dele foi no final do processo. É curioso, porque no começo do processo eu fico sempre tentando entender o filme, como quem recebe um lego, mas sem instrução. Você fica tentando entender qual é a lógica de montagem daquele filme. Eu tenho as minhas ideias que quero colocar, mas não tenho uma estratégia muito fechada, o filme é que começa a te informar o que ele quer. Isso demora um certo tempo. No começo, eu estava sendo muito pragmático: esse é um filme sobre cinemas no século 20. Aos poucos eu fui entendendo que o filme precisava começar de uma outra forma, e foi aí que comecei a pesquisar meu próprio material sobre a minha casa, e a montagem começou a dar certo. A montagem é muito clássica, quase soviética, mas em alguns momentos ela começou a entrar no campo do experimental. O superclássico dá a volta e termina no experimental. Eu gosto muito dessa coisa do apartamento porque ela estabeleceu muitas coisas que foram expandidas para o campo da cidade.

No início, eu e o Matheus estávamos tentando entender o sistema de montagem do filme, mas logo estabelecemos um tipo de troca entre nós muito interessante. Um dia eu cheguei pra ele e falei: “Tem essa foto aqui do Trianon, e eu quero ver se a gente entra na foto”. Aí a gente deu um zoom nessa foto da sala de espera do cinema que foi direto em um homem que está em pé e a gente não tinha visto antes. É como se a gente encontrasse um fantasma no fundo da foto. Foi uma troca muito produtiva.

A trilha sonora sempre é marcante nos seus filmes, sugerindo comentários sobre episódios e personagens e conectando-se com a memória afetiva do público. Como se deu a escolha das músicas para Retratos Fantasmas?

KMF – A trilha sonora é achada há muito tempo. Há anos eu queria usar a música Rise, do Herb Alpert, que toca no final. Mas é claro que eu tive que esperar se na montagem final aquilo faz sentido. Ela começa no filme como um muzak (música de elevador) e passa a ter uma importância dramática na cena. Ela vai aumentando de volume até que se transforma no tema do filme. Traz uma coisa positiva e dançante e ao mesmo tempo uma tristeza para o final do filme. O Tom Zé, com Happy End, surgiu no período final de montagem, trazendo essa questão de final feliz cinematográfico, que nem sempre acontece. Nelson Ferreira tem duas músicas: Quanto É Bom Envelhecer e Evocação. Ele me foi apresentado pelo meu pai, tem um significado especial.

O final de Retratos Fantasmas é um dos mais criativos do cinema brasileiro dos últimos tempos, fazendo uma crítica sagaz ao processo de descaracterização e homogeneização das grandes cidades brasileiras – atualmente, com a multiplicação infindável de farmácias – e uma divertida brincadeira com os filmes de super-heróis. Como você concebeu esse desfecho encenado para o filme?

KMF – Achei uma boa ideia, gosto muito da cena. Ela sugere coisas mais fortes talvez ali. Fala da permanência das coisas: elas desaparecem, mas também permanecem um pouco ali. Eu lembro de um cinema chamado Rivoli, no bairro Casa Amarela, que fechou no final dos anos 1970. Em 1992, eu estava na faculdade, peguei um ônibus e uma senhora subiu e perguntou: “Para ali na frente do cinema Rivoli?”. E o motorista respondeu: “Paro exatamente na frente do cinema”. Como se o cinema não tivesse desaparecido. Essa ideia do taxista que desaparece no final de Retratos Fantasmas me lembra um pouco os finais de O Som ao Redor e Bacurau.

Vitrine Filmes/Divulgação

Para o lançamento de Retratos Fantasmas, uma série de quadrinistas criou cartazes especiais para o filme, reproduzidos abaixo. O grupo de artistas é formado por Lila Cruz, Chico Shiko, Weaver Lima, Gustavo Nascimento, Grazi Fonseca, Victor Reis, Marília Marz e Diana Salú.

Lila Cruz/Reprodução

Chico Shiko/Reprodução

Weaver Lima/Reprodução

Gustavo Nascimento/Reprodução

Grazi Fonseca/Reprodução

Victor Reis/Reprodução

Marília Marz/Reprodução

Diana Salú/Reprodução

Retratos Fantasmas: * * * * *

COTAÇÕES

* * * * * ótimo     * * * * muito bom     * * * bom     * * regular     * ruim

Assista ao trailer de Retratos Fantasmas:

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