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“Zona de Interesse” dialoga com a banalidade do mal

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“Zona de Interesse” dialoga com a banalidade do mal A24/Divulgação

Indicado ao Oscar em cinco categorias – incluindo melhor longa-metragem, filme internacional, direção e roteiro adaptado –, Zona de Interesse (2023) é perturbador e desconcertante. Vencedor do Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes do ano passado, o drama histórico dirigido por Jonathan Glazer acompanha o cotidiano doméstico da família do comandante nazista de Auschwitz, que vive em aparente tranquilidade em uma bela casa com jardim ao lado do infame campo de concentração.

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Zona de Interesse é inspirado pelo romance homônimo publicado em 2014 pelo escritor inglês Martin Amis (1949 – 2023), cujo título refere-se ao local em Auschwitz onde os prisioneiros recém-chegados passavam por uma triagem que determinava se seriam destinados aos trabalhos forçados ou diretamente às câmaras de gás. Na trama, Rudolf Höss – interpretado por Christian Friedel, ator de A Fita Branca (2009), impressionante filme sobre as origens do nazismo dirigido por Michael Haneke –, comandante do campo de concentração localizado na Polônia, e sua esposa Hedwig (Sandra Hüller) se esforçam para levar uma existência idílica com os filhos morando ao lado de Auschwitz.

Cercados por mordomias e atendidos por uma criadagem formada por poloneses locais e prisioneiros, a família alemã ignora – mais precisamente, finge ignorar – dentro de casa o horror incessantemente perpetrado na fábrica de morte vizinha. Mesmo simples referências a judeus no ambiente do lar são apenas esporádicas e laterais, restritas a comentários corriqueiros ou piadas.

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No trabalho, a desumanização e indiferença com relação aos prisioneiros também dita o comportamento e a linguagem de Höss, seus colegas oficiais e os técnicos encarregados de aperfeiçoar os métodos de extermínio de seres humanos, referindo-se às vítimas em termos neutros como “carga” e discutindo o genocídio com assustadora frieza pragmática e mesmo burocrática.

O muro alto que separa a casa de sonhos do campo de concentração, porém, não é capaz de isolar totalmente os Höss da barbárie. Para além da constante visão das torres de vigilância e da sinistra fumaça escura que sai das chaminés, são os sons que informam, ainda que às vezes de maneira indistinta, os personagens – e os espectadores do filme – a respeito do pesadelo que se desenrola incansavelmente logo ao lado.

O desenho de som de Johnnie Burn – também indicado ao Oscar – é impressionante e evocativo, pontuando todo o filme com rumores de gritos, tiros, motores e ordens, que se misturam a risos, latidos e choros de bebê, evidenciando uma incômoda convivência naturalizada entre brutalidade e domesticidade. Esse mal-estar termina por afetar a todos, adultos e crianças, incapazes de anular por completo com sua negação a realidade ao redor.

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O uso expressivo do som em Zona de Interesse, aliás, ecoa o fato histórico: o verdadeiro Rudolf Höss (1901 – 1947) ordenou que alguém estivesse constantemente acelerando uma motocicleta por perto para que o barulho abafasse os gritos de terror e dor vindos do campo.

Já a direção de fotografia de Łukasz Żal esmera-se no contraste entre o enclave bucólico nazista e o complexo genocida distante poucos passos em travellings nos quais Hedwig – interpretada pela ótima atriz alemã Sandra Hüller, indicada ao Oscar por seu papel em Anatomia de uma Queda (2023), filme também em cartaz atualmente – passeia em seu magnífico jardim, tendo ao fundo o macabro fumo dos fornos crematórios riscando o vívido céu azul.

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Outra sequência visualmente provocadora de Zona de Interesse acompanha uma garota deixando à noite nos campos frutas e alimentos, enquanto escuta-se fora de quadro a voz de Höss lendo para os filhos a história de João e Maria na cruel versão dos Irmãos Grimm. As cenas são filmadas com câmera térmica, que registra o calor de ambientes e pessoas no escuro, mostrando assim a jovem com uma luminescência branca leitosa, como uma figura quase sobrenatural.

Segundo Jonathan Glazer, a personagem – sobre a qual não se tem virtualmente nenhuma informação no filme – foi baseada em uma polonesa nonagenária que o diretor conheceu enquanto fazia as pesquisas para a produção, que na infância durante a II Guerra resolveu ajudar os prisioneiros de Auschwitz, perto de onde morava, deixando comida para eles em canteiros de obras à noite. “Há algo muito bonito e poético no fato de [o registro da imagem] ser por calor e ela brilhar. Isso reforça a ideia dela como uma energia”, justificou o cineasta em entrevista à revista Vanity Fair.

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Realizador de títulos instigantes como Reencarnação (2004) e, especialmente, Sob a Pele (2013), Jonathan Glazer propõe em Zona de Interesse uma experiência cinematográfica impactante, às vezes desconfortável e quem sabe até nauseante para alguns. A recusa em filmar de forma explícita e gráfica o Holocausto pode até ser matéria de debate, mas seu relato calcado tanto – ou mais – em sensações quanto informações sobre a “banalidade do mal”, conceito criado pela pensadora alemã Hannah Arendt (1906 – 1975) para explicar atitudes abomináveis como as dos nazistas perpetradas por pessoas comuns, é inegavelmente poderoso e chocante.

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Zona de Interesse: * * * * *

COTAÇÕES

* * * * * ótimo     * * * * muito bom     * * * bom     * * regular     * ruim

Assista ao trailer de Zona de Interesse:

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