Artigos | Marcelo Carneiro da Cunha | Série

Beef/Treta

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Beef/Treta Netflix/Divulgação

Não sei se os amigos conhecem essa gíria americana beef. Claro que beef é carne de gado e vem do francês, boef, de quando os normandos invadiram a Inglaterra em 1066, e portanto a nobreza da Inglaterra passou a falar francês por motivo de obrigação. Beef, em português, virou bife, que todos sabem o que é, mesmo que encontrem por aí com menos frequência do que nos tempos de antanho.

Mas, to have beef with someone é ter um bife com alguém, que significa ter um problema, ou um motivo pra conflito, ou briga. Beef é uma história de briga, de uma briga que começa e não sabe onde parar.

Para o nome da série Beef, no Brasil, alguém escolheu Treta, exibida na Netflix. Eu não sei se os amigos concordam, mas treta é outra coisa, mais parecida com manha, com enganar alguém, que até é algo que acontece bastante na série, mas não quer dizer a mesma coisa do que o título original, Beef. Bronca! Ter uma bronca com alguém. Algo assim talvez expresse melhor o que Beef, a série, tem a nos dizer.

Algumas coisas que a vida contemporânea nos traz é que ter uma bronca, ou iniciar um conflito com alguém, é mais fácil e mais difícil do que já foi. A proximidade com que vivemos, as muitas oportunidades para disputas – por espaço, por emprego, por direitos que sentimos negados, por ofensas online ou não, por todo tipo de irritação que os vizinhos podem nos causar, tudo isso aumenta, e muito, as chances de desenvolvermos boas e solenes broncas.

Por outro lado, existem leis e uma polícia, que supostamente deve mediar esses conflitos. Ou advogados. Ou porteiros, no Brasil, ao menos. A maioria dos conflitos contemporâneos, por todos esses motivos, acontecem, e perdem força, como ondas na praia.

Não é o que ocorre em Beef. O que era uma marola vira tsunami, por conta do espírito belicoso de Amy Lau e Danny Cho, protagonistas da história. Os dois personagens, e atores, são de origem asiática, asian-americans, uma das gavetas étnicas do grande armário social americano. O criador da série também.

Portanto, de várias maneiras, a série vai lidar com a experiência americana – onde todo mundo se sente dotado dos mais amplos direitos – e da experiência de descendentes de asiáticos nos Estados Unidos, que coloca pressão confuciana sobre pessoas que são, na essência, americanas.

Amy e Danny são seres sob várias pressões, e isso se transforma em uma reação em cadeia a partir de um acidente fútil no trânsito, sem vítimas nem perdas – ao menos nos primeiros 30 segundos do feudo entre eles. Amy e Danny talvez não sejam lá tão bons construtores, caso dele, ou empreendedora, caso dela, mas de briga, de bronca, aí eles excedem.

Dois personagens dotados de uma boa capacidade de organização e poucos pruridos éticos são capazes de produzir muito, mas muito estrago em vidas tão interligadas como temos hoje. As redes sociais nos condenam ao convívio e criam múltiplas oportunidades de infernização de todos. Nossos empregos são dependentes de nossa imagem social e online, e ela pode ser muito facilmente abalada, ou destruída.

Amy e Danny vão iniciar algo, perder o controle desse algo e ter as suas vidas profundamente afetadas pelo que criaram e, de muitas formas, não controlam. Beef/Treta é uma das séries mais interessantes de 2023, e só posso sugerir que vejam, ao mesmo tempo em que peço a todos que por favor, não se sintam estimulados a ir lá fora resolver as coisas da mesma maneira que eles.

Em primeiro lugar, porque não resolvem. Em segundo lugar, porque, normalmente, que ganha com o Beef é ele mesmo, as nossas neuroses desatadas. Todos sabemos que a pior versão de nós mesmos é algo que nem o nosso psicanalista deveria assistir. Assistam Beef pra lembrar que vale a pena a gente controlar o monstro que vive no estômago de todos nós, vale a pena não deixarmos que nossas raivas tomem conta.

O mundo mediado por nossas mágoas e frustrações é assustador demais, e raramente paga as contas. Deixem tudo isso pra lá, e convidem o vizinho baderneiro pra um chá e uma conversa. Tudo mais pode ser bem pior, e mais complicado do que fazer com ele o que vocês realmente gostariam, e que tem a ver com poços de elevador.

Fica a dica.

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