Artigos | Marcelo Carneiro da Cunha | Série

“Corpos” no espaço-tempo

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“Corpos” no espaço-tempo Netflix/Divulgação

A Netflix lançou a série inglesa Corpos, Bodies, e ela é uma das coisas boas e intrigantes que você pode fazer nesses dias de El Niño e clima pra ficar em casa, no sofazão, só no binge watching. Corpos é uma tradicional história de mistério envolvendo corpos e investigação sobre a morte do tal corpo, com o detalhe essencial de que quatro detetives investigam o mistério da morte do mesmo corpo, separados no tempo por décadas entre uma história e outra.

Esse é o ponto de partida para um argumento incomum, em uma série incomum, e o truque aqui é dizer do que estamos falando, sem cair no risco de escorregar em spoilers. Basicamente, você começa nos dias de hoje, durante uma manifestação da ultradireita em Londres, onde uma policial persegue um suspeito e encontra o tal corpo pela primeira vez. Dali, saltamos no tempo para décadas antes, e chegamos ao mesmo corpo. E mais um salto, e mais uma vez o nosso misterioso defunto.

No segmento dedicado aos bons e velhos tempos de 1890, anos em que o famoso Jack, o Estripador assustava as ruas de Londres, somos conduzidos a uma autópsia vitoriana. Se você passar por essa cena com o estômago mais ou menos no lugar, vai poder chegar a um final de episódio surpreendente, que vai fazer você querer ver mais. E mais, e mais.

E é assim que a série funciona. Comece, não esqueça de ter um Dramin por perto pra evitar náuseas na hora da autópsia – único spoiler que iremos compartilhar, para poupar as sensibilidades de nossos estimados leitores – e siga em frente. Você não vai parar.

A Inglaterra sempre teve uma afinidade toda dela para histórias de mistério e investigação. A Era Vitoriana, com a explosão econômica e social trazida pela Revolução Industrial, criou um ambiente de disruptura do que havia, e a sensação de que o mundo ordenado de antes tinha se transformado em algo desconhecido, misterioso e turvo. Londres, a capital dessa revolução, misturando séculos, ruelas, chiaroscuro por toda parte, se tornou um cenário natural para novos tipos de crimes, e novas formas de investigação.

Netflix/Divulgação

Histórias policiais somente são possíveis em sociedades que acreditem nas instituições, na ordem, e na lei. Investigação de crimes, pra valer, somente são possíveis em sociedades ricas o bastante para manter forças policiais modernas, treinadas e pagas para efetivamente investigar e prender suspeitos e culpados.

Uma história policial demanda que a gente acredite que aqueles policiais realmente querem realizar seu trabalho, têm os recursos para isso, e a sociedade espera e cobra resultados. Na Inglaterra vitoriana todos esses elementos já estavam reunidos, e por isso temos Sherlock Holmes e seu fiel escudeiro Watson, já em 1887.

Os americanos, uma sociedade que se tornou industrial levemente mais tarde, criou a sua narrativa policial nos anos 1930-40, com grandes nomes, como Dashiell Hammett ou Raymond Chandler, e mais cinismo. Na França, o grande personagem investigador vive nos anos 1930, o Comissário Maigret, na escrita magistral de Georges Simenon. Já no Brasil, por todos os motivos acima, nossas histórias policiais acontecem mais ou menos nunca, com uma vaga exceção no personagem Mandrake, de Rubem Fonseca, que não era policial, mas advogado.

Corpos, portanto, se insere na grande tradição da narrativa de investigação da Inglaterra, da qual Agatha Christie fica mais fora do que dentro.
Comecem a ver, com uma caixa de Bis do lado, e tentem parar.

Eu vos desafio, e até a próxima.

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