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As “Canções de Atormentar” de Angélica Freitas

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As “Canções de Atormentar” de Angélica Freitas Detalhe de "Mirror", obra de Camile Sproesser, que integra a capa de "Canções de Atormentar", de Angélica Freitas. Foto: Cia das Letras

Um dos principais nomes da poesia brasileira contemporânea, autora de Um Útero É do Tamanho de um Punho (2012, Cosac Naify, reeditado pela Companhia das Letras em 2017) e Rilke Shake (2007, Cosac Naify e 7Letras), a pelotense Angélica Freitas acaba de publicar Canções de Atormentar, seu terceiro livro, pela Companhia das Letras. Na entrevista a seguir, a poeta fala sobre o lançamento, suas parcerias musicais recentes com a cantora mineira Juliana Perdigão – sua companheira de vida e de palco – e o compositor Vitor Ramil, conterrâneo de Freitas que vem apresentando versos musicados da poeta no projeto Avenida Angélica.

“A música é muito importante na minha vida, tão importante quanto a literatura. Às vezes acho que é mais importante ainda, que me nutre mais, que me eletriza mais. E me dei conta, há alguns anos, que me interessa mais escrever poemas que possam ser cantados, entoados. E eu também componho umas canções. Um dia quero ir para um estúdio e gravá-las”, conta a autora.

A poeta Angélica Freitas. Foto: Dirk Skiba/Cia das Letras

Como você tem vivido os últimos meses e como tem sido lançar um livro em meio à pandemia? Em junho, no Sarau Elétrico, você comentou que estava caminhando quilômetros na esteira. Segue no mesmo ritmo?

Quando a pandemônia começou, eu disse pra mim mesma: não vou pirar. Nem a mim, nem a outras pessoas. Não vou ser alarmista. Achava que ia durar só um mês, imagina. Em março comecei a fazer umas lives sobre escrita criativa no Facebook, para ajudar as pessoas a atravessarem o encerro voluntário com graça e criatividade. Dei oficinas online, também, e elas me mantiveram estudando loucamente. Acordava antes do sol raiar. Comprei uma esteira para fazer exercício, já que não podia sair à rua. Andava uns quatro quilômetros por dia, e isso me ajudou também a manter a sanidade. Mas desisti de escrever mensagens de alento nas redes sociais, me retraí, passei longas horas no quarto lendo a Ilíada, e as sátiras do Horácio, entre outros livros. Desisti porque não havia como levantar a moral das pessoas, e nem porquê, do jeito que o governo brasileiro tratava (ainda trata) a pandemia. Agora estou em Berlim, sou uma das artistas residentes do DAAD este ano, e tenho uma vida bem normal, consigo sair para tomar café e comprar livros (também encontro muitos livros na rua, estou terminando de ler Stoner, do John Williams, achei numa caixa de doações, é muito bom). E caminhar nos parques, que são muitos aqui. Parece outro mundo.

Capa de “Canções de Atormentar”, de Angélica Freitas. Foto: Cia das Letras

Parte dos poemas de Canções de Atormentar foi publicada desde 2008 em livros e revistas, ou então apresentada na sua performance ao lado de Juliana Perdigão (no poema que dá título ao livro). Como foi o processo de reunir esses textos, produzidos ao longo de mais de uma década?

Desde 2008 escrevi várias séries de poemas que pensava serem livrinhos independentes, como a do Laranjal e A história mais velha do rock’n’roll. Mas acabei não indo atrás de publicação. Eu escrevo em cadernos e quase nunca passo nada a limpo, vou só escrevendo. Porque o meu negócio é esse, criar, escrever, inventar coisas. Publicar, putz, sempre fica em segundo plano. E o tempo foi passando… E as pessoas me pedindo um livro novo. Daí juntei num arquivo os poemas dos quais me lembrava e gostava. Foi assim que fechei o Canções…. Acho que ele complementa o Rilke Shake e o Um Útero… muito bem, e leva algumas questões formais e temáticas adiante, sí, sí, cómo no.

Um dos poemas inéditos, Laranjal, que abre Canções…, aborda memórias de infância, uma temática que parece se diferenciar, pelo menos à primeira vista, do conjunto da sua produção poética. Poderia nos falar um pouco mais sobre esse poema?

Laranjal é uma série de poemas que comecei a escrever em 2008, quando morava em Delft, na Holanda. Estava longe de Pelotas havia pelo menos um ano, e me peguei escrevendo sobre a praia onde passei os verões da minha infância e adolescência. Cantar a nossa aldeia, certo? Botar nossa aldeia no mapa. E de longe parece que a gente vê melhor. Escrevi uma parte dessa série na Argentina, também, e em São Paulo, dois lugares onde vivi.

Há uma sequência de três poemas em Canções… que, por diferentes caminhos, abordam a questão “viver no Brasil”. Você faz referências à violência policial e às crises políticas recentes (em porto alegre, 2016); à nossa surrealidade cotidiana (micro-ondas); e a visões idealizadas do país, nas menções a Carmen Miranda e à Aquarela do Brasil (em sentada no topo do mundo). De que forma essa leitura mais panorâmica do país tem encontrado espaço na tua escrita?

Acho dificílimo sentar e escrever um poema sobre A Situação Atual do País, encontrar um tom, uma forma de dizer as coisas. Nem sei se quero. Prefiro neste momento escrever sobre a minha gata Titin que está miando loucamente enquanto escrevo, pedindo comida, apesar de o potinho de ração estar cheio. Esses poemas sobre o Brasil praticamente se apresentaram pra mim, não tive que decidir escrevê-los. Abri o caderno e escrevi. E achei por bem compartilhar.

Ainda explorando o livro a partir de temáticas que ganham maior ou menor evidência: as questões de gênero, marcantes em Um Útero…, parecem estar mais diluídas em Canções…. Uma das poucas exceções talvez seja o poema que intitula o livro, no qual a figura da sereia aponta para essas questões de forma mais evidente. Você concorda com essa leitura? Em que medida isso foi uma escolha? 

Acho que há mais poemas no livro que são sobre ser mulher, como o montada em seu primeiro pentelho branco, você não sabe o que é uma teta caída, agora é que sou elas, cruzeiro… Deve ter mais. Eu não queria que este livro fosse uma sequência do Um Útero…. Bem, no Canções… estão todas as minhas preocupações temáticas até agora. Quem esperava um outro Útero…, I’m sorry! Mas não tão sorry.  

Antes de voltarmos ao Canções de Atormentar, gostaria que você comentasse as suas parcerias musicais recentes, começando pelo projeto com a Juliana Perdigão. Como ele se desenvolveu e como você se sentiu nos palcos (inclusive tocando guitarra)?

Aprendo muito com a Ju sobre performance, a importância de ensaiar mil vezes e também da improvisação. A gente começou a fazer performance juntas quando o Joca Reiners Terron nos convidou para participar do Zapoeta, um projeto de poesia e música. Eu tinha já uma série de poemas sobre sereias, e tinha musicado alguns deles com meu violãozito. A Ju me ajudou a transformá-los em música. Eu precisei tocar guitarra por necessidade mesmo, porque num dos poemas a Ju tocava clarone, e alguém tinha que fazer a base… Daí fui eu mesma. Acho que ninguém espera virtuosismo da minha parte, mas já comentaram que toco muito bem. Eu fico pensando: que cara de pau a minha. Mas vou lá e faço o que preciso fazer, que é quebrar tudo. Haha. 

Em outra parceria musical, Vitor Ramil musicou poemas seus nos shows do projeto Avenida Angélica. Como surgiu esse contato e como tem sido escutar essas versões?

Bem, o que dizer de ser musicada pelo Vitor? Eu já morri e ressuscitei algumas vezes com essa ideia. O Vitor dá uma vida nova pros poemas, e é maravilhoso poder escutá-los na voz dele. Mas o que me deixa ainda mais feliz nessa parceria é que ficamos amigos, e é muito bom poder conversar com ele sobre música, poesia, processos criativos, e sobre a vida em geral. Ele é como um irmão mais velho pra mim.

Indo um pouco além das parcerias, mais ainda falando da relação com a música: como você percebe esse cruzamento de linguagens na sua produção poética? Levando em conta que as menções ao universo musical aparecem nos seus poemas desde Rilke Shake, por exemplo, nos versos de r.c. – recentemente musicados por Ramil: “mas a verdade é que/ quase tudo aprendi/ ouvindo as canções do rádio”. E agora você publica um livro que traz “canções” no título, oriundo de uma performance com música. 

A música é muito importante na minha vida, tão importante quanto a literatura. Às vezes acho que é mais importante ainda, que me nutre mais, que me eletriza mais. E me dei conta, há alguns anos, que me interessa mais escrever poemas que possam ser cantados, entoados. E eu também componho umas canções. Um dia quero ir para um estúdio e gravá-las.  

Ainda em torno das conexões musicais, agora voltando ao livro: temos os poemas rômulo fróes toma uma decisão e juçara marçal adota um gato, que mesclam situações cotidianas com fragmentos inusitados – como a decisão de viver numa árvore e ser uma pessoa que veio do sistema estelar Alfa Centauro. Poderia nos falar mais sobre esses dois poemas?

Rômulo e Juçara são dois artistas que admiro imensamente, acho que têm em sua arte uma qualidade extraterrestre (daí Alfa Centauro) e, neste mundo, uma maneira de ver e lidar com os acontecimentos que é surpreendente (daí decidir viver numa árvore). Os poemas são singelas homenagens.

Em junho, no Sarau Elétrico, você comentou que tem gostado cada vez mais de ler poemas em voz alta diante de outras pessoas. Como têm sido essas experiências?

Ler em voz alta é um grandessíssimo kick. Poemas têm que alterar, pirar, bagunçar quem está lendo/ouvindo, e quando tu lê para uma plateia, o efeito é muito mais potente. Apresenta-se também a oportunidade de um feedback do público, que pode vir em forma de palmas ou de objetos arremessados na tua direção, calcinhas, o ABC da Literatura do Pound, etc (ainda não aconteceu). Eu escrevo pra mim, mas quando compartilho, ah, bicho, é pra ninguém sair do mesmo jeito que entrou. Ui.

Por fim, outra homenageada em Canções… é Ana Cristina Cesar, no poema ana c., que parte de um relato sobre quando você teve o primeiro contato com a escrita da autora. Como foi esse encontro e qual o papel dela no teu interesse pela escrita e pela poesia?

Ler a Ana C aos 15 anos mudou tudo pra mim. Eu estudava eletrônica na Escola Técnica de Pelotas (hoje IFSul), mas meu aproveitamento era sofrível… ficava no fundo da sala de aula escrevendo poemas e, nas aulas práticas, fazia pulseirinhas com os resistores. Um colega chegou um dia com o A Teus Pés, me emprestou, e eu chapei. Aquela poesia era muito diferente da que eu tinha acesso até então, ou seja, o que estava na biblioteca da escola. Comecei a escrever uns poemas estranhos… E acabei saindo da Escola Técnica, porque pelas minhas notas baixas já era óbvio que eu não tinha talento pra eletrônica. Meu pai me aconselhou: “Tu tem que fazer Letras”. E eu até fui, mas isso já é outra história. 

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