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Literatura indígena para descatequizar mentes

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Literatura indígena para descatequizar mentes Julie Dorrico: Foto: Arquivo pessoal

Nesta quinta (29/10), às 19h, o Goethe-Institut Porto Alegre promove a primeira de duas conferências online sobre literatura indígena que terão como participantes a escritora macuxi Julie Dorrico e o escritor maraguá Roni Wasiry Guara. Com o tema A literatura indígena brasileira contemporânea: identidade, voz e corpo, Dorrico apresenta a fala de abertura do seminário, na qual abordará, entre outros temas, a desconstrução de matrizes coloniais e a literatura indígena como afirmação de pertencimento e expressão estética.

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Nascida nas terras da cachoeira pequena, conhecidas como Guajará-Mirim, em Rondônia, com passagem por Porto Alegre e vivendo atualmente em Porto Velho, Dorrico é doutoranda em Literatura pela PUCRS. No ano passado, lançou Eu Sou Macuxi e Outras Histórias (Editora Caos e Letras), no qual reflete sobre sua tomada de consciência como indígena – tema de um belo relato da escritora publicado pela revista Parêntese em fevereiro.

Em 2018, Dorrico publicou, como autora e co-organizadora ao lado de outros acadêmicos, a coletânea de artigos Literatura Indígena Brasileira Contemporânea: Criação, Crítica e Recepção (Editora Fi) – disponível para download. A atuação da escritora e pesquisadora amplia-se no universo digital por meio de três plataformas: os perfis de Instagram @leiamulheresindigenas e @literaturaindigenaro; e o canal de YouTube Literatura Indígena Brasileira.

Conversamos com Julie Dorrico sobre autoria indígena, oralidade, desconstrução de representações e sua atuação acadêmica e literária. Confira a entrevista.

Em suas falas e artigos você costuma destacar que a literatura indígena precede a escrita alfabética. Poderia nos contar mais sobre essa perspectiva?

Isto tem a ver com o conceito de literatura elaborado pelos autores indígenas, sobretudo por Daniel Munduruku, que define a literatura indígena para além da vertente da escrita alfabética, podendo ser cantada, falada, dançada. Com isso, reiteramos que a literatura indígena não se prende ao livro editorial impresso, na língua portuguesa e registrado na escrita alfabética. Veja bem, o conceito permite então que os contadores de histórias façam parte desse sistema literário indígena, e não necessariamente só os escritores que publicam nesse formato. Assim, sugere Edson Kayapó, convidar um contador de histórias indígena para a sala de aula é também valorizar os saberes que não estão no livro indígena.

Também quero enfatizar que a escrita alfabética é um código de linguagem do ocidente, e que existem outros que foram desprezados e categorizados como ágrafos. Os povos indígenas possuem seus códigos de escrita, chamado de escrita-desenho por Kaká Werá na obra A Terra dos Mil Povos (Editora Peirópolis, 1998) e pictoglífica, por Janice Thiél, em Pele Silenciosa, Pele Sonora: a Literatura Indígena em Destaque (Autêntica, 2012). Costumo fazer o paralelo das relações assimétricas na sociedade dominante em relação aos povos indígenas ao indagar se uma pessoa branca é chamada de analfabeta por não saber decodificar as escritas indígenas. No caso do indígena, sim, se ele não souber, é discriminado. Então ao valorizar a oralidade como uma vertente da literatura indígena, há também a valorização de seus códigos de escrita e outras plataformas que não as convencionais dominantes.

No artigo “Vozes da literatura indígena brasileira contemporânea: do registro etnográfico à criação literária”, a questão da autoria indígena é analisada em alguns de seus diferentes aspectos – da possibilidade de emancipação à desconstrução de representações, passando pela expressão de uma pluralidade de lugares de fala. Você poderia comentar alguns desses pontos?

A autoria é o caráter central do movimento literário indígena. Isto porque até a década de 1990 a autoria era assumida como um privilégio do branco que por meio dela conseguia traduzir os pensamentos indígenas à sociedade dominante. A autoria não era algo a ser considerada por esses estudiosos porque eles atribuíam a autoria como sendo de contexto de escrita (alfabética) que se chegasse ao contexto oral violaria os princípios culturais de um povo, afinal em contexto de oralidade não há autoria. O grande problema dessa postura era a falta de incentivo autoral aos sujeitos e povos indígenas para uma autonomia decorrente dessa autoria. O que acabava sendo rentável também para esses brancos, uma vez que publicavam livros, com devidos direitos autorais e reconhecimento social, apresentando-se como verdadeiros tutores dos povos indígenas.

Assim, a autoria se mostra como uma ferramenta de autonomia potente para desafiar a tutela (física e epistemológica) imposta pelo Estado brasileiro aos sujeitos indígenas. Quando passam a publicar livros autorais, passam a combater o racismo cimentado no imaginário de que todos os indígenas são iguais, cultuam o mesmo deus, e falam a mesma língua. Passam a mostrar as suas sociodiversidades, combater as representações negativas lançadas nos movimentos literários brasileiros e a proteger suas propriedades intelectuais. Reitero que a autoria é a condição fundamental para a autonomia dos sujeitos indígenas. Por isso convido as editoras a fomentarem a publicação de obras autorais indígenas, a escutar nossas histórias e conhecer nossas experiências humanas sem mediação, garanto que vão se apaixonar.

Outra questão investigada por você e outros pesquisadores diz respeito às autorias coletivas e individuais na literatura dos povos indígenas. Quais são os principais aspectos desse debate?

Após o advento da Constituição Federal de 1988, em que cai por terra o conceito de que os indígenas eram categoria transitória e estariam caminhando na linha do pré-humano (indígena) para o civilizado (brasileiro), os povos indígenas tiveram direito às suas línguas maternas e à educação específica e diferenciada, como dita o artigo 210 da Carta Magna. Com isso, puderam produzir materiais próprios voltados para a educação escolar indígena, como livros didáticos. A esses livros, confeccionados no contexto de formação de professores, por assessores e educadores não indígenas, produzidos por indígenas e não indígenas, convencionou-se chamar de autoria coletiva. Essa produção porém fica circunscrita aos ambientes escolares e não tem apelo editorial, isto é, circulação nesse mercado editorial, pois são em sua maioria subsidiados por órgãos governamentais.

A autoria indígena individual impressa que nasce paralelamente nesse tempo, porém, vai ter esse apelo editorial, e é essa circulação que vai informar à sociedade dominante que existem escritores indígenas brasileiros, inaugurando uma nova relação entre sujeitos indígenas e sociedade envolvente.

Agora que percorremos alguns dos pontos fundamentais para nos situarmos em relação à literatura indígena, gostaria que você comentasse um pouco do panorama atual. Em termos gerais, como você enxerga a literatura indígena contemporânea no Brasil? De que forma ela se distribui por diferentes povos e territórios, quais espaços está conquistando e que tipos de textos e temáticas podemos encontrar?

Enxergo com um potencial de que “chegamos para ficar”. Essa frase dita por Daniel Munduruku expressa a manifestação da literatura indígena nos dias de hoje. Atualmente temos a vertente da autoria individual, via mercado editorial, que cumpre o papel de informar a sociedade dominante de que há escritores indígenas, obras e um movimento literário vivo. A atuação de alguns escritores tem sido fundamental para semear oportunidades para os mais jovens. A premiação de muitos escritores estabelece novas relações e apoio para a produção autoral indígena, esse ano por exemplo, temos o escritor e intelectual Ailton Krenak como finalista do Prêmio Jabuti, eleito intelectual do ano e vencedor do prêmio Juca Pato. Isso é gigante para os povos indígenas e celebramos coletivamente essa conquista.

Dos autores individuais, que são 57, temos a representação de 23 povos, das regiões Norte, Nordeste, Sul, Centro-oeste, Sudeste e crescendo. Apresentam suas narrativas ancestrais, suas formas de dar sentido ao mundo, suas línguas, seus paradigmas e a resistência contínua frente ao capitalismo, isso tudo mostrando com muito orgulho seus pertencimentos étnicos.

Uma das vertentes dessa produção é a literatura infantojuvenil, tema de um texto recente, publicado por você na revista Quatro Cinco Um. Gostaria que você falasse um pouco sobre o caráter estratégico desses livros no que se refere à aproximação junto a leitores não indígenas.

Como eu falei no artigo para a revista Quatro Cinco Um, com o tempo essa foi uma estratégia consciente adotada pelos escritores, que provam que a produção autoral indígena não viola as regras culturais dos povos, mas a revigora. Assim, uma das principais matérias-primas para a produção da literatura infantojuvenil indígena é a das narrativas ancestrais que narram a origem do mundo, dos animais e das pessoas. Aqui percebemos a grande potência estética dos autores indígenas, que com seus processos criativos honram as histórias ancestrais de seus povos, apresentando belíssimas obras existentes na oralidade, elaboradas com muito cuidado e de modo positivo. Ao compartilhar com a sociedade brasileira suas cosmologias, enriquecem as culturas no país.

Gostaria que você nos contasse sobre a sua atuação em projetos como o “Leia mulheres indígenas”. Como eles são desenvolvidos e como você aborda a intersecção de gênero nas suas reflexões?

No mês de março criei a página Leia Mulheres Indígenas no Instagram (@leiamulheresindigenas) com intuito de levar as escritoras indígenas para o clube de leituras que estava (e está) acontecendo no Brasil. No mês de abril conheci a May Sigwalt e a Paola Vilela (Lola), também parentas, que com vídeos também falavam da literatura indígena e divulgavam para seus públicos. Eu as convidei para administrar a página comigo e hoje fazemos coletivamente o trabalho de divulgar as escritoras indígenas, mas não só, também as artistas e as mulheres indígenas, uma vez que entendemos a leitura também como uma leitura de linguagens.

A intersecção de gênero é fundamental no nosso movimento porque fomos povos (injustamente) racializados pelos colonizadores. As consequências da racialização operam na classe, no gênero, e no corpo, e ela vem primeiro atravessando todos os campos de nossa vida. Assim procuramos desconstruir essa racialização como produto da modernidade divulgando a produção autoral das mulheres indígenas, atuando contra o racismo, contra a hiperssexualização do corpo da mulher indígena, desmistificando a heterossexualidade com o fortalecimento e divulgação da produção artística da comunidade LGBTQ, entre outros.

Recentemente você publicou Eu Sou Macuxi e Outras Histórias. Nos conta um pouco sobre essa obra e sobre a sua atuação como autora fora da academia. Como você percebe essas diferentes abordagens?

A obra narra um pouco da minha trajetória autobiográfica e a tomada de consciência de mim enquanto indígena. Foi um grande presente a acolhida do Eduardo Sabino e do Cristiano Rato, editores da Caos e Letras, e a confiança no projeto para a publicação. Escrevi a obra – que acabou levando o primeiro lugar – para o concurso Tamoios/UKA/FNLIJ, em 2019, como uma afirmação do orgulho que eu sinto de ser indígena, mas também uma resistência à convencional crença de que Makunaima é de Mário de Andrade, sendo ele demiurgo do povo do qual descendo, o Macuxi.

Minha atuação é predominantemente acadêmica, desde 2017 escrevo sistematicamente artigos e capítulos de livros, pois tenho uma profunda desilusão com a produção de conhecimento no país, voltada para a celebração dos eventos coloniais e menos para a colonização e o trauma imposto aos negros e indígenas. Atuar na academia é também a forma que encontrei de demarcar esse território simbólico. Já existem muitos acadêmicos que há décadas iniciaram essa trajetória intelectual na defesa das culturas indígenas, cito Daniel Munduruku, Gersem Baniwa, Edson Kayapó, Ailton Krenak, Eliane Potiguara, Olívio Jekupé, que cultivaram o solo para que nós jovens florescêssemos hoje. Para mim tem uma diferença grande, e as duas áreas, acadêmica e literária, demandam estudo, prática, cuidado na enunciação, mas tento equilibrá-las.

Para concluir o nosso papo, gostaria que você comentasse um conceito abordado por você em um dos artigos de Literatura Indígena Contemporânea. De que forma a produção literária indígena opera a “descatequização de mentes”?

A descatequização da mente é um conceito de Kaká Werá como crítica à colonização, nas figuras dos padres jesuítas que teatralizavam a história indígena impondo sua visão de mundo cristã. É, portanto, um apelo para a desmistificação de que os indígenas possuíam crenças demonizantes, que não eram humanos, que deveriam ser escravizados e subjugados ao colonizador europeu. É uma crítica à instituição cristã como justificativa normativa colonial para o etnogenocídio indígena. Por que isso é retomado? Porque embora exista o mito de que a colonização tenha acabado no ano de 1822 (com a “Independência do Brasil”), ela persiste nas suas políticas mais perversas sobre os povos indígenas, negando-lhes direitos territoriais, humanos, sociais. As variantes do cristianismo seguem operando dentro das comunidades indígenas instalando igrejas e demonizando as crenças indígenas. Ainda existe a premissa de que os indígenas precisam ser salvos pelo cristianismo de suas maiores barbáries. A descatequização da mente é pôr em xeque o autoritarismo religioso alimentado pelo sistema ocidental e desconstruir simbolicamente o mito da monocultura.

Sobre o evento:

A literatura indígena brasileira contemporânea: identidade, voz e corpo
Conferencista: Julie Dorrico
29 de outubro, 19h

A literatura indígena brasileira contemporânea: Julie Dorrico e Roni Wasiry Guara em diálogo
Conferencistas: Julie Dorrico e Roni Wasiry Guara
12 de novembro, 19h

Transmissão e acesso às gravações das palestras:

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