Coraçãozinho de galinha elétrico
A cantora Ana Frango Elétrico faria show em Porto Alegre no dia 28 de março, no Agulha, mais um entre tantos espetáculos cancelados devido à pandemia do coronavírus. Diante da impossibilidade de aglomerações, quem não pôde assistir à apresentação pode recorrer às plataformas digitais para escutar o disco Little Electric Chicken Heart (2019) – excelente dica para colorir os dias de isolamento.
O álbum evidencia a complexidade sonora de Ana Fainguelernt – sobrenome que dá origem ao apelido da compositora carioca de 22 anos -, que já havia lançado Mormaço Queima (2018) e que fez a abertura do show de Ava Rocha realizado em outubro de 2018 no Agulha. A “bossa-pop-rock decadente com pinceladas punk” do disco de estreia ganha tons mais melódicos e nostálgicos em Little Electric…, sem abrir mão da inventividade e irreverência que caracterizam as composições da cantora.
“Sei que meu avanço musical tem muito a ver com a prática. Eu me comprometo com ela, com o exercício da linguagem musical no dia a dia, no experimento de gravar”, conta Ana, que além de cantora e musicista também pinta e escreve poesia.
Confira a entrevista com Ana Frango Elétrico:
Nos conta um pouco sobre a atmosfera sonora que você buscou em Little Electric Chicken Heart. Que diferenças você vê em relação a Mormaço Queima?
Busquei uma atmosfera relacionada a nostalgia, coração, afetos, lembranças sonoras antigas. Acho que a principal diferença foi o objetivo de produção e resultado: Mormaço Queima é mais saturado, gravado sem clique, tudo em cima de mim e minha guitarra, uma pegada mais Daniel Johnston e Syd Barrett. Como costumo chamar, uma “bossa-pop-rock decadente com pinceladas punk”. Um punk colorido teletubbies fritado.
Como foi o processo de concepção e gravação do disco? Gostaríamos que você comentasse também as participações do álbum.
O processo foi longo e as participações foram muitas! Convidei Martin Scian para produzir comigo, mas fazendo a parte de engenharia sonora, gravando, pensando os microfones e timbres, como chegaríamos a certas sensações e timbres. Comecei pré-produzindo sozinha, finalizando repertório, ordem, nome, e sabendo que referências iria querer. Depois Martin fez uma degustação de possibilidades de microfones com a minha voz, e decidimos que, sem dúvida, o RCA ia ser o microfone do disco, com o qual gravaríamos todas as minhas vozes.
Queríamos uma unidade sonora. Apesar de cada música ter sua particularidade de produção, o disco todo tem uma base sonora comum. E, afinal, iríamos levar o material necessário para um estúdio com pé-direito alto e uma sala grande, que eram importantes para o som de bateria e de algumas coisas que queríamos.
Há três anos toco com Antônio Neves, Guilherme Lirio e Vôvo Bebê. Eles formaram o núcleo bruto das bases. Antônio Neves fez os arranjos de sopros, que são indispensáveis para a ideia do disco. E depois fomos recebendo feras que foram se somando: Alberto Continentino, Marcelo Costa, Eduardo Santanna, Dora Morelenbaum, Tim Bernardes, JOCA, Marcelo Cebukin, Juliana Thiré, Thomás Duarte, Raquel Dimantas, Laura Lavieri, Tuca… Músicos incríveis e de idades que vão dos 20 aos 60!
As músicas de Little Electric… vão com frequência por um caminho mais intimista, abordando sentimentos e relacionamentos. Ao mesmo tempo, nos seus dois discos é muito marcante um olhar para o cotidiano, com percepções muito particulares e bem-humoradas. Como você vê a presença desses universos nas suas canções?
Vejo através da poesia. Desse olhar pros fragmentos, da escrita. Pequenos acontecimentos e a saturação deles. Uma certa sinestesia.
Falando mais especificamente das suas letras, você joga bastante com a estrutura dos versos, brinca com a mistura de palavras em inglês e português, traz imagens inusitadas… Como é o seu processo de escrita?
Meu processo vem mudado. Em 2016, era mais dadaísta, muito ligado a anotação e depois colagem de sentido e narrativas mais surreais. Depois foi começando a ser mais direto, uma poesia direta me vinha por meio do som ou assunto e aí eu musicava, ou me vinha alguma ideia de canção mais dentro das estruturas. Hoje em dia tenho feito bastante coisas instrumentais e depois penso na letra, ou chamo alguém para colaborar na letra ou me mandar algo para adaptar (tenho gostado de fazer isso).
Você já comentou em outras entrevistas a sua relação desde pequena com a música, incluindo uma formação mais clássica em um dado período. Como você vê hoje em dia essa trajetória e de que modo como você articula esse conhecimento formal com outras referências e o caráter mais experimental da sua música?
Vejo essa trajetória no meu ouvido, na prática de ouvir dentro de mim e ir atrás até achar. Acho que cada vez mais tenho aperfeiçoado meu método de compor como cancionista e como instrumentista e produtora. Sei que meu avanço musical tem muito a ver com a prática. Eu me comprometo com ela, com o exercício da linguagem musical no dia a dia, no experimento de gravar. Hoje em dia, voltei a saber mais teoria. Ainda que não usufrua tanto dela sozinha, me facilita bastante quando toco com outras pessoas. Veio através do baixo, que comecei a tocar em 2017, antes não sabia o que tocava nas minhas composições. Não sei o que articulo, mas sei do prazer que sinto nos acordes e na poesia, e tento me satisfazer minimamente. Sinto tanto as gravações quanto as canções como um quadro que pinto: tenho uma ideia e, no primeiro traço no quadro branco, já fudi tudo, daí o resto sou eu tentando me satisfazer esteticamente a partir desse quadrado em questão.
Por fim, o público de Porto Alegre infelizmente não pôde assistir ao show marcado para o final de março, no Agulha. Como você tem vivido esse momento de isolamento social?
Tenho pré-produzido meu próximo álbum pelo celular e cuidado da minha família, cozinhando, limpando… Me preocupo com quem não pode estar fazendo o mesmo e com o futuro da saúde física e financeira individual e coletiva. Tenho sentido minha religiosidade aflorar nesse momento.
Escute Mormaço Queima e Little Electric Chicken Heart no Spotify.
E confira a apresentação intimista da cantora no canal Sala de Estar: