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Cristal: “A gente cansou de ser só a mina que dança no clipe”

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Cristal: “A gente cansou de ser só a mina que dança no clipe” Cristal. Foto: Alass Derivas | Deriva Jornalismo

A filha da Gisele, neta da Adalgisa, tataraneta da Ignácia é uma jovem poeta e rapper da zona sul de Porto Alegre que tornou-se, num curto espaço de tempo, um grande fenômeno do rap nacional. Aos 15 anos já competia nos slams da capital gaúcha e em 2017 foi campeã da etapa regional, o que lhe permitiu disputar o Slam BR — Campeonato Nacional de Poesia Falada — em São Paulo. Das competições de poesia nos slams para as batidas do rap foi um pulo: em 2019 estreou na música com o single Rude Girl, produzido por MDN Beatz, e poucos meses depois lançou o trap Ashley Banks, cuja enorme repercussão levou-a a participar do Planeta Atlântida, rendendo-lhe indicações de melhor clipe e artista revelação daquele ano. O sucesso meteórico acabou por chamar a atenção de figuras importantes da cena hip hop brasileira, como o rapper Djonga, que a convidou para um feat na faixa Deus Dará do seu álbum mais recente. Em 2020, Cristal ganhou o prêmio Sh!t de ouro do Canal The Rap Shit como artista revelação do ano; o clipe de Ashley Banks levou o prêmio de melhor clipe local no I Festival Cinema Negro Em Ação. E agora, no presente mês de julho de 2021, a jovem acaba de lançar Quartzo, seu primeiro EP.

Apesar da pouca idade, Cristal possui um repertório cultural consistente. Leitora de Conceição Evaristo, cresceu vendo a tia Marieta recitar poemas no sarau Sopapo Poético. Além disso, é possível perceber em seus poemas e em suas letras referências não só teóricas e literárias, como Angela Davis e Djamila Ribeiro, mas também musicais, como Etta James e Jorge Aragão. Sua consciência racial, de classe e de gênero moldou-se a partir das discussões empreendidas durante as festas no quintal da família: o mesmo local onde surgiram também as suas primeiras rimas. Ciente de que seus passos vêm de longe, Cristal busca honrar a sua ancestralidade e, ao mesmo tempo, preocupa-se com os mais novos: “tenho pretinhos para inspirar lá em casa”.

“Cristal Rocha é consciente do seu potencial e sabe fazer uso do mesmo”, afirma a musicista e poeta Lilian Rocha, autora de A Vida Pulsa: Poesias e Reflexões, Negra Soul e Menina de Tranças. “Conheci Cristal no sarau Sopapo Poético, com seus 15 para 16 anos. A menina-adolescente abriu a boca e reverberou pelo salão conhecimento, ancestralidade, ritmo, musicalidade. Não era uma poesia infantil; era madura, assim como a carreira que está construindo como rapper.”

“Desde o slam, já se percebia que a escrita da Cristal era diferente, pela facilidade em emocionar e curar feridas ancestrais”, conta o escritor, rapper e produtor cultural Bruno Negrão, autor de E Se Jesus Fosse Preto?. “Na música, a sua poesia encontrou um ritmo contagiante, com versos que grudam na cabeça, sem perder o foco em passar uma mensagem de alento ou inspiração.”

É claro que nós do Grupo Matinal não poderíamos perder a oportunidade de ir bater um papo com essa figuraça sobre o seu novo trabalho, sobre pandemia, sobre planos para o futuro, sobre a vida. Confere aí:

Vamos começar com as perguntas de praxe. Tu nasceu onde?

Eu nasci aqui. Vila Nova, zona sul de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Moro aqui desde que eu nasci. Tenho muitas histórias neste bairro. Minha infância foi sempre muito rodeada pela família. Por mais que a minha família não se concentre toda aqui, muitos dos meus parentes moram perto, então cresci em relação com os meus primos, as outras crianças da família, aqui no bairro e nos bairros ao redor, e com muitos amigos também.

Estudou onde?

Eu era bolsista no Colégio Santa Teresa de Jesus, que é um colégio particular católico, ali na Cavalhada.

A gente percebe, não só nas tuas letras, mas também nas tuas falas, toda uma consciência racial, toda uma consciência de classe, toda uma consciência de gênero. Tu acredita que a escola contribuiu pra que tu desenvolvesse tudo isso?

Isso vem de dentro da minha casa. É algo que não estava em outro espaço. Perguntas que a gente faz e que não foi na escola que eu encontrei respostas. Na escola vieram mais perguntas ainda. Como eu falei, eu era bolsista numa escola particular. Então aquele meio em que eu estudava era muito diferente do meio em que eu vivia. O mundo da escola era muito diferente do mundo de quando eu voltava pra casa. E sobre isso e outras coisas, tive que tirar as minhas próprias conclusões. É daí que vêm as minhas consciências. É claro que eu tive influências, como a minha mãe, sempre conversando comigo, e a minha tia Marieta, que me levou pela primeira vez num sarau, lá no Sopapo Poético, em 2017 ou 2016.

Tua tia Marieta também é poeta?

Não. Minha tia-avó Marieta é professora, já aposentada, de Língua Portuguesa e Literatura. Sempre foi atuante no Movimento Negro e faz parte de grupos de leituras de autores negros. No sarau Sopapo Poético, geralmente participa recitando poemas de poetas como Oliveira Silveira, entre outros poetas negros.  Desde quando eu era pequena, me dava livros infantis que já tratavam das questões raciais. No início deste ano escreveu seu primeiro livro, Meia Siza – Ignácia e Aramis: Mãe e filho na luta pela sobrevivência no pós-abolição que conta a história da origem da nossa família, a partir de lembranças, pesquisa, relatos e depoimentos de minha avó e outros familiares.

Essas consciências de que falamos, então, vêm de casa, mas tu acredita que elas se potencializam em espaços como o slam e o hip hop?

Com certeza. Quando as pessoas encontram o slam, descobrem o slam, a primeira poesia é um desabafo. É sempre muito pesado, na primeira vez que a gente vai recitar. Porque é um lugar onde a gente percebe que todo o mundo tá livre pra ser quem quiser e dizer as coisas que precisam ser ditas. Então, muitos dos poetas procuram esses espaços para serem ouvidos, que é o que a gente mais sente falta no dia a dia. A minha necessidade, por exemplo, vem do fato de que o recorte racial não era abordado na escola, e também do meu dia a dia: tentar entender por que as coisas no mundo eram diferentes comigo, com os meus primos, com a minha mãe. Eu tava tentando entender tudo isso, desenvolvendo o pensamento, criando ideias, e o slam foi um dos primeiros espaços que eu tive pra expressar tudo isso, e também pra conhecer o que os outros tinham pra expressar. Então, com certeza: espaços como o slam e o hip hop potencializam de uma forma incrível as nossas consciências. São verdadeiras escolas.

José Falero e Cristal. Foto: Alass Derivas | Deriva Jornalismo

Como a pandemia te afetou? Como tu tem lidado com a pandemia?

Quando a pandemia começou, tinha muita coisa acontecendo. Ashley Banks tinha estourado fazia pouco tempo. E, desde que tinha estourado, a gente tinha começado a fazer os primeiros shows juntos, eu e o MDN Beatz, que é meu primo. Então a gente teve umas experiências, tipo uns cinco ou seis shows; as coisas estavam começando a andar, e foi quando veio a pandemia. A gente teve que dar uma segurada e readaptar os nossos planos. Tivemos que parar de ir no estúdio, de sair de casa; não pudemos lançar os singles que queríamos lançar. Então, foi complicado. Muita incerteza. A gente ficava pensando: como as pessoas vão querer consumir arte num momento em que está todo o mundo tão preocupado, tão aflito? Não fomos só nós, é claro. Toda a cena [musical] foi se modificando, se adaptando, para dar um jeito de chegar nas pessoas, até pra que o som servisse como companhia nesse isolamento. Foi difícil, e ainda é difícil. Mas a gente tem tido mais tempo pra ensaio, então estamos podendo trazer mais elementos pras performances, estamos tendo mais atenção com a nossa voz e com o que estamos apresentando. Estamos, com calma, tentando tirar alguma coisa disso tudo.

Quais são as influências no teu trabalho? O que te inspira? Como é o teu processo criativo? Quando tu te senta pra fazer um poema ou fazer uma música, como as coisas se desenrolam?

As minhas referências e influências são muitos artistas, que me acompanham o tempo todo, desde a minha infância. Tudo o que a minha família ouve de música, por exemplo, sempre serviu de referência e influência pra mim. Eu sempre gostei de prestar atenção em todos os elementos de uma música, como a sonoridade, os instrumentos, as letras. Por exemplo, minha mãe ouvia, e ainda ouve, Tribalistas. E, se tu for ouvir, eles trazem elementos de tudo; eles fazem um som até com instrumentos infantis, sabe? Eu sei disso porque gosto de prestar atenção nessas coisas. Então, esse é o meu processo criativo: prestar atenção nas coisas, descobrir coisas novas. Não gosto de me prender em uma coisa só. Se tu for pegar o meu primeiro single e o meu último single antes do EP, eles são super diferentes. Quartzo também tem músicas muito diferentes uma da outra. Então o meu processo criativo é: se eu acabo uma música, eu abandono totalmente a ideia dela, pra entrar em outro personagem, pra entrar em outra vibe.

Fala um pouco sobre o teu livro, Quando o Caso Escurece. Tu pretende publicar mais livros?

Quando o Caso Escurece veio da novidade que eram pra mim os zines, os livros independentes. E quem trouxe isso pra cá, na época da nossa cena de slam, da nossa bolha, foi o Bruno Negrão. Ele foi o primeiro poeta que eu conheci que tinha um zine aqui. Lá em São Paulo o bagulho já tava rolando há um tempão, mas aqui o primeiro que eu conheci que tinha um zine foi ele, e foi ele que me inspirou a fazer. Daí eu fiz Quando o Caso Escurece, que é um conjunto de vinte poesias autorais. A ideia era que ficasse com a minha cara. Então eu desenhei, fiz os desenhos, as ilustrações, tudo no meu PC, imprimi tudo, e também toda a parte manual, recortei tudo e tal. E, nossa!, na época, acho que devo ter vendido mais de mil livros, assim, só de mão em mão. Mas todo evento, cada lugar que a gente ia, eu levava livros na bolsa, e sempre era uma galera que comprava. Teve outro projeto que eu participei com um zine também, quando eu era integrante do coletivo Poetas Vivos. E também teve o Querem nos Calar, que saiu pela editora Planeta. Foi uma organização da Mel Duarte, com prefácio da Conceição Evaristo: várias poetas do Brasil reunidas ali. E eu penso, sim, em lançar outro livro futuramente, e também em outros projetos de literatura, como, por exemplo, relançar Quando o Caso Escurece, com um formato diferente.

Tem um poema que tu mandou no Slam Peleia, em 2018, que diz assim: “Nós adora um estilo, mas o que cê tem lido?”. Então eu te pergunto: o que tu tem lido? O que tu gosta de ler?

O último livro de prosa que eu li foi Ponciá Vicêncio, da Conceição Evaristo. Mas eu vou confessar que já fui muito mais da leitura. Eu tenho o hábito de ler, mas quando eu era pequena, lia muito mais. Quando eu comecei a escrever, passei a ler muito mais poesia do que prosa, e depois a vida foi se tornando cada vez mais corrida, principalmente agora que eu tenho trabalhado bastante, então fica difícil conciliar tudo isso com a leitura. Eu acho que tenho que voltar a ler mais, como antes.

Historicamente, o hip hop não é um espaço muito acolhedor para as mulheres. A maioria dos artistas são homens, e as poucas mulheres que entram no hip hop muitas vezes acabam invisibilizadas. A que tu atribui isso? Como mudar isso? Quais são as mulheres do hip hop que te inspiram?

Eu acho que, historicamente, nós, mulheres, somos prejudicadas em qualquer espaço. Não podemos confundir: a nossa cultura é machista; isso vai aparecer no hip hop, mas não vem do hip hop. Ao contrário: o propósito do hip hop é liberdade de expressão, e não qualquer expressão, mas a expressão das minorias, tá ligado? Veio da necessidade de expressão, de desabafo, das minorias. Além disso, se tu for ver lá, a crescente do movimento foi com o Afrika Bambaataa, mas as mulheres estavam em peso, somando na luta, tanto como grafiteiras quanto como b-girls. A gente tem que refletir sobre a origem do hip hop e não podemos deixar se perder o valor que isso teve e tem. Muito me incomoda o termo “rap feminino”, em alguns contextos, sabe? Porque às vezes é como se nos botassem em caixinhas, e daí dia 8 [de março] fazem eventos com as mulheres, e mesmo assim só com as que têm um pouco mais de visibilidade, e depois é aquilo: os projetos nem falam da gente, os sites nem falam da gente. Então é ruim, é desrespeitoso e desvaloriza o nosso trabalho essa coisa de “deixa as mulheres ali, fazendo rap de mulher, e vamos pro outro lado, fazer rap de homem”. Poxa, a gente também tá dando o papo reto. Mas acho que essa cultura machista, que atravessa todos os espaços, ainda vai demorar algum tempo pra ser quebrada. Acho que a gente tem atingido espaços e posições importantes (olha a Negra Li, a Drik Barrbosa, a Stefanie, a Lourena), só que ainda são muito pontuais as nossas presenças. Estamos no início de uma mudança positiva nesse sentido, mas acho que ainda temos muito trabalho pela frente. É um assunto que precisa, sim, de muita discussão, mas principalmente de muita ação, de movimento.

Tu começou muito jovem no slam, com 15 anos. Mas dá pra perceber em ti toda uma maturidade, não só em termos de consciência política, mas também no teu fazer poético, no teu jeito de fazer poesia. Tu já fazia poesia antes de chegar no slam? Quando foi que tu te descobriu poeta?

Eu sempre escrevi, desde pequena. Logo após eu aprender a escrever, não demorou muito pra eu começar a criar historinhas. Eu lembro que a minha mãe sempre me deu diários, então eu gostava de ir escrevendo ali como é que foi o meu dia. Logo surgiram uns versinhos, umas músicas. Depois, na época do Orkut, a minha mãe tinha feito um perfil pra mim, e daí eu fiz uma comunidade só com os meus poemas, pra família ler. E eu segui assim, escrevendo as coisas e mostrando em casa, pra minha mãe, pra família. Também teve um projeto na escola, na aula de Português, se não me engano. A gente tava aprendendo sobre poesia, e a ideia era fazer um livro com as poesias da turma. O tema do livro era: sonhar em tempos de incerteza. Foi a primeira vez que escrevi uma poesia sobre questões sociais e raciais. Eu já refletia muito sobre essas questões, conversava comigo mesma, mas acho que foi a primeira vez que botei no papel, e o meu poema foi o escolhido pra ler na classe. Isso foi pouco tempo antes de eu conhecer o slam. Era o início. Eu tava começando a ter uma identidade na minha poesia.

Como é passar do slam pro rap? Tu enxerga muitas diferenças entre fazer uma poesia pra competir no slam e compor uma música?

As diferenças são técnicas. Porque, no fundo, a coisa da inspiração, do objetivo, é igual: se trata de desabafar, falar o que pensa, falar a verdade. É claro que depende muito de cada um, depende do que cada artista quer falar. Mas as diferenças que tu perguntou são mais técnicas. Por exemplo, quando a gente vai botar a poesia em cima de um beat, a gente tem que desestruturar ela, tem que cortar umas palavras, por causa da métrica, pra encaixar no flow, pra encaixar na batida, pra encaixar no ritmo. Um poema pra ser recitado no slam é muito mais livre, ainda que eu, particularmente, costumasse recitar de forma um pouco mais quadrada. Essa virada de chave, do slam pra música, foi muito natural. Porque, como eu já disse, sempre escutei muita música em casa, e sempre gostei de escutar. E eu pensava em fazer rap, mas faltava um empurrãozinho. Esse empurrãozinho quem me deu foi o MDN Beatz, que ficava toda hora me chamando pra ir no estúdio dele: “bota as tuas poesias num beat”. E aí, um dia, rolou.

As tuas letras têm muitas referências a sambistas. Como é a tua relação com o samba?

Isso também vem da minha família. Eu cresci ouvindo samba. É totalmente familiar. O samba já é uma influência em mim desde antes de eu aprender a prestar atenção nos elementos da música. Depois, já começando a prestar atenção nas letras, em tudo, percebi uma coisa especial que o samba tem. Tu pode ver: mesmo que seja um samba muito triste, com uma letra muito triste, e mesmo que tu esteja muito triste, aquele samba vai te levantar de alguma maneira. O instrumental, as vozes, as interpretações: o samba parece um abraço na alma.

Outra coisa que dá pra perceber nas tuas músicas e nos teus poemas são as referências à ancestralidade. Como é isso pra ti?

A ancestralidade, pra mim, é tudo. É o que me permite olhar pra trás pra saber o que eu vou fazer lá na frente. É a minha via. Eu só vou entender o texto em que eu tô encaixada, a música em que eu tô trabalhando, se eu souber o que me permitiu estar aqui. Então, a ancestralidade está em tudo: desde os meus vizinhos e parentes mais velhos até as primeiras pessoas que estavam lá, no princípio do hip hop. Eu, contando a minha história na música, um dia vou ser ancestral de alguém. E esse alguém vai ouvir a minha música e entender o que eu vivia, o que eu sentia, o que eu pensava. A ancestralidade não fica no passado. Ela está lá, no passado, mas também está aqui, assim como estará no futuro. A ancestralidade é contínua.

Voltando ao single Ashley Banks, tu parece ser fã de Um Maluco no Pedaço. Pode falar um pouco sobre isso?

Ashley Banks surgiu na época em que a série entrou pra Netflix. É claro que eu já tinha assistido muitos episódios na TV aberta: eu costumava assistir com a minha vó. Mas foi só quando entrou na Netflix que eu pude acompanhar desde o início, episódio por episódio. Ao mesmo tempo, nessa época, o trap tava fluindo, tava surgindo muitos nomes diferentes, a galara tava ouvindo cada vez mais, e aí tudo se encaixou. Principalmente porque eu gostava muito de brisar no elenco, daquela família que era uma família preta, uma família rica, uma família estruturada, com pai, com mãe, com irmãos, e a gente sabe como é difícil ver isso na TV, né? Normalmente as famílias como as nossas são representadas na TV de forma desfalcada. Ou é mãe solo, ou é pai solo, ou um irmão faleceu, ou algo assim. Então, ver famílias como as nossas representadas na TV em um outro contexto é importante. Porque a gente percebe que toda aquela estruturação, todo aquele contexto, também é possível pra nós. Eu olhava e ficava pensando: “nossa, quando a gente tiver uma casa como essa, quando a gente tiver todas essas coisas, quando pudermos fazer festas assim!”. Eu também ficava prestando atenção na forma como eles se relacionavam, todo o afeto e todo o cuidado que um tinha com o outro, todo o humor que tinha dentro daquela família. É uma série familiar e simbólica, que representa muita coisa. Por isso eu sou fã da série.

Tu curte a velha escola do rap?

Sim. Eu lembro que os primeiros raps que eu ouvi, que eu fui lá e escolhi pra ouvir, foi do Gabriel O Pensador. Minha mãe tinha no computador vários álbuns, e numa dessas que eu estava fuçando, eu peguei o álbum do Gabriel O Pensador pra ouvir. Mas a minha mãe já tinha outras influências. Ela sempre foi muito da MPB, mas na juventude ela ouvia Racionais e tal, Planet Hemp, entre outros. Depois é que eu fui resgatando algumas coisas. Agora, ainda estou nesse processo de voltar e buscar esses artistas. Porque quando eu comecei a me interessar por rap, tinha muita coisa acontecendo, muita coisa nova. Quando eu comecei a ouvir mais, era muito BK, era a galera que tava começando, o Froid.

Não é raro que as mulheres sejam objetificadas nos raps contemporâneos, e uma das muitas virtudes do teu trabalho é justamente trazer uma representação mais rica, mais potente e mais humana da figura feminina. Como é pra ti trabalhar essa questão?

Sempre me perguntam se é uma temática que eu escolho. Não. Na verdade, é algo natural, faz parte de mim. Não é algo como “ah, eu vou falar sobre empoderamento feminino, porque eu quero responder tal rapper”. Não. Na verdade, eu não tô nem aí pra o que falam, tá ligado? Eu só defendo a minha verdade; e o que eu acredito, eu vou falar. Então, a minha própria vida é uma resposta pros discursos que objetificam as mulheres. Eu estar em pé, fazendo rap, sabendo que é difícil me aceitarem numa cena dessas, eu sei que essa é a resposta certa pra isso. As mulheres precisam ser enxergadas da mesma forma que os homens na cena, tá ligado? Com o mesmo respeito, com a mesma admiração. Mas a recepção, claro, é sempre diferente. Poxa, a gente cansou de ser só a mina que dança no clipe, que não tem história nenhuma. A gente quer falar sobre a mina que tá dançando no clipe: qual é a história dela?, o que ela tem pra falar?, o que ela gosta de curtir?, qual o som que ela gosta? É isso.

Cristal. Foto: Alass Derivas | Deriva Jornalismo

Tu pode falar um pouco do novo trabalho, o Quartzo?

Tem dois anos de processo criativo dele. O conceito foi criado antes da pandemia, eu já tinha a ideia criativa de como ia ser: seis faixas, cada uma com um cristal diferente. Depois as ideias foram se somando. E dentro da pandemia a gente começou a gravar as guias. Foi um processo muito louco, assim, porque realmente mexeu com todo o meu emocional durante o isolamento. E é o que eu digo: eu tinha lançado vários singles que era eu comentando sobre o que eu via, e o Quartzo era algo de dentro pra fora. Eu tive que aprender a lidar com as coisas que estavam passando batido na correria do dia a dia. Como eu estava em isolamento, eu prestei atenção em várias coisas que estavam erradas, que estavam me incomodando, que eu precisava falar. E muitas respostas das pessoas são assim: “nossa, essa música mudou a minha vida, que massa essa letra”. E eu fico pensando: “mano, eu só fui sincera, eu só falei o que eu estava pensando”. É como se fosse uma conversa. Se a gente sentasse aqui e tu me perguntasse como eu me sinto com a visibilidade que o rap me trouxe, ia ser Start, eu ia recitar Start, ia ser uma conversa. Start é uma conversa, é a naturalidade de se permitir. Eu não preciso ficar pensando muito em o que os outros vão falar. Eu só preciso falar o que eu acho que preciso falar, o que eu preciso dizer. Então o Quartzo veio disso, de um desabafo. Eu e o MDN Beatz, a gente, na hora do processo, foi tudo muito junto. Os elementos das músicas, as vozes, os beats: tudo a gente escolheu junto, cada cor. Foi um processo bem intenso, bem profundo.

Na final do Slam Peleia, tu terminou um poema dizendo “vim tocar na sua ferida”, fazendo referência a assuntos como o racismo, que não podem ser varridos pra debaixo do tapete, que precisam ser debatidos, por mais doloroso que isso possa ser. Mas, ao mesmo tempo, o teu trabalho de modo geral, e o Quartzo em particular, tem toda uma preocupação de não falar apenas de dor. Como é pra ti encontrar esse equilíbrio?

O Quartzo fala de dor, mas fala também para além de dor. Ele fala de dores que eu não estava atentando. Às vezes, lutar, ou a resistência que a gente tanto fala nas letras, também é cuidar de si. E o racismo, querendo ou não, mesmo não sendo falado explicitamente, ele tá ali, ele acaba com o meu psicológico, ele acaba com a forma como eu vejo o mundo; ele tá por trás da insegurança de lançar meus trampos, tá ligado? A gente sabe que o mundo que a gente vive é o mundo que tá aí, matando jovens. Se não nos mata fisicamente, nos mata no emocional. Tem muitos jovens que lidam com a depressão e com problemas emocionais, e passam a vida toda abafando isso, achando que não importa muito, que é pouca coisa, que não deve se preocupar. Então, o Quartzo veio dessa necessidade de trazer essas pessoas pra perto da gente. Tipo, mano, é uma conversa de amigos, entendeu? Eu sei o que tu tá sentindo, tá ligado? Muita gente inclusive fala: “nossa, tal música me tocou muito”. Ametista, por exemplo, tem muita gente que fala sobre ela, e é uma música bem pessoal, é um desabafo. Isso mostra pra gente ver como as pessoas estão mal mesmo, como as pessoas se sentem sozinhas. No Quartzo, eu falo muito da solidão. Não é algo ruim, mas é algo que em algum momento da nossa vida a gente vai viver, em mais de um momento até, a gente vai ter que ficar sozinha. Tem coisas que são só nossas, pensamentos que são só nossos, que só nós conhecemos. Então, é olhar pra essa particularidade e ver como isso age, como tem influência do meio externo. Sem o racismo, sem a pressão social, sem as redes sociais, entendeu?

 “Tem preto no sul!” é um bordão muito comum no universo do slam. Como é, pra ti, ser preta no sul? Como é a tua relação com os teus contemporâneos, com toda essa galera preta que tá produzindo arte nos mais variados segmentos no sul do Brasil?

O bordão “tem preto no sul!” surgiu de forma muito natural. Não foi nada assim: “ah, vamos pensar em como chegar nos outros”. Não. Na primeira final regional do Slam, aqui em Porto Alegre, foi a primeira vez que os representantes do Sul foram pra São Paulo representar o estado. Fomos eu e o Bruno Negrão, e ainda assim, com todas as nossas falas, a cena dos poetas, a maioria era poetas brancos, e eu acredito que com o passar do tempo a galera foi chegando junto e falando as verdades, porque é um espaço de fala, né? Então, isso foi se modificando com o tempo. E eu lembro que quando aconteceu, quando a gente ganhou, teve esse grito: “tem preto no sul!”, e ia ter preto gaúcho representando lá fora. Quando a gente chegou lá em São Paulo, a galera achava que a gente não era daqui. Achava que a gente era do Rio de Janeiro ou de São Paulo ou de qualquer outro lugar. Então, tinha essa coisa: estavam esperando olho azul. A gente sabe como o país enxerga o Sul, por causa do apagamento que as pessoas pretas sofrem, né? Desde a história dos Lanceiros Negros até a galera preta produzindo arte no Sul hoje em dia, tem uma parte enorme da história que a gente nem faz ideia que rola, sabe? Então, esses artistas todos tinham o mesmo discurso, todos o mesmo objetivo. E é muito frustrante tu ver tantas pessoas talentosas, esforçadas e dedicadas com a arte, com o trabalho, serem invisibilizadas, apagadas. O Janove e o Afrovulto foram os primeiros poetas daqui que eu vi falando sobre racismo. Eles são referências pra mim, me inspiram. O Bruno Negrão, também, que eu conheci quando eu fui recitar pela primeira vez. E muitos outros, muitas outras pessoas que eu fui conhecendo com o passar do tempo. Poetas que se tornaram meus amigos. São pessoas muito importantes pra mim, porque me ajudam a me enxergar, me ajudam a me encontrar, porque às vezes a gente até morando aqui, sabendo das nossas famílias, dos nossos amigos, a gente às vezes não tem noção do que rola no movimento negro, no movimento periférico. A gente às vezes tá na nossa bolha, mas tem muita coisa, tem muito artista, tem muito preto aqui no sul, fazendo arte, fazendo todo tipo de trampo, e o slam com certeza funciona como um espaço de juntar essa galera, de agregar, é um palco enorme.

Quais são teus planos? O que tu tá pensando em fazer daqui pra a frente?

Agora é o momento de trabalhar divulgando o Quartzo. A gente que fazer mais e mais conexões. O nosso trampo já chegou noutros estados, e a gente quer trazer essa galera toda pra perto do nosso som, pra trocar essa ideia com a gente. Futuramente, ainda este ano, vai ter bastante colaboração; depois do EP, vai ter bastante som com participações. Tem muito projeto massa que a gente tá elaborando, vai vir bastante som diferente. O objetivo maior é lançar um álbum baseado no Eternizarte, daqui a um tempo. Desde a minha palestra no TEDx Laçador que eu penso em fazer isso. Aos pouquinhos, a gente vai construindo.

Se tu pudesse voltar no tempo, o que diria pra ti mesma? Que tipo de mensagem tu gostaria de ter ouvido quando era mais jovem, e que não ouviu?

Tudo é uma construção. Acho que tudo acabou acontecendo como tinha que acontecer. Eu não mudaria nada na minha vida, nas minhas escolhas. Mas eu diria pra eu ter mais confiança em mim mesma. Muitas vezes fui insegura, tive medo de recitar, de declamar, ou mesmo de escrever. Muitas vezes me sabotei por causa da minha insegurança. A gente vive numa sociedade que faz os jovens se sentirem o problema, quando, na verdade, esses jovens são prejudicados pelo problema. Então eu diria isso, não só pra mim mesma, mas pra qualquer outro jovem: acredita em ti mesmo. É clichê, eu sei, mas é verdade, e muitas vezes a gente precisa ouvir isso. Se tu não bota fé em ti, por que outro botaria? Olha pra ti mesmo, seja verdadeiro contigo. Idealiza, sonha. Te permite idealizar e sonhar. E tem que ter paciência, porque tudo é um processo.

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