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Mais de 70% dos trabalhadores do setor criativo estão sem renda, revela pesquisa

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Mais de 70% dos trabalhadores do setor criativo estão sem renda, revela pesquisa Foto: Maryanna Oliveira/Câmara dos Deputados

Realizada entre os dias 27 de março e 23 de julho, a coleta de dados obteve respostas de 1.639 indivíduos e 969 organizações de todo o país – 78% desse total afirma ter cancelado entre 50% e 100% de suas atividades em abril

Uma crise de grandes proporções ocorre em paralelo à emergência sanitária que há seis meses corrói as finanças e a sanidade dos brasileiros. Primeiro a parar em função das medidas de distanciamento social e ainda sem qualquer esperança de retorno, o setor da economia criativa agoniza. É o que revela uma pesquisa divulgada pelo Observatório da Economia Criativa da Bahia (Obec-BA), feita em parceria com diversas universidades brasileiras, entre elas a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Segundo o levantamento “Impactos da Covid-19 na Economia Criativa”, respondido de forma remota e voluntária por 2,6 mil pessoas físicas e jurídicas, mais de 70% dos trabalhadores e das empresas do setor tinham reservas para aguentar até três meses sem atividade. Como sabemos, já faz pelo menos três meses que esse tempo acabou.

Realizada entre os dias 27 de março e 23 de julho de 2020, a coleta de dados obteve respostas de 1.639 indivíduos e 969 organizações de todo o país – 78% desse total afirma ter cancelado entre 50% e 100% de suas atividades em abril. Sem reservas e sem perspectiva, o setor não vê alento. Mais da metade dos trabalhadores autônomos e também das organizações não se arriscam a fazer previsões de retorno e sequer conseguem estimar quantos cancelamentos de eventos e projetos ainda vão amargar.

“Uma das perguntas abertas que fizemos foi justamente o que as pessoas estavam fazendo para se manter, para se alimentar. As respostas são de chorar. Muitas entregaram os imóveis em que viviam, por não poderem pagar. Cancelaram a escola dos filhos, venderam equipamentos ou instrumentos musicais, estão vivendo de doações. É uma situação alarmante”, afirma professora Daniele Canedo, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, que é coordenadora do Obec-BA e uma das coordenadoras da pesquisa.

A solução para ao menos remediar a situação passa, obrigatoriamente, pelos mecanismos de auxílio governamental. “Não é que as pessoas tenham ficado sem um complemento de renda. Elas ficaram sem renda nenhuma. A classe se mobilizou inclusive para fornecer alimentos. A solução é o auxílio emergencial para os trabalhadores do setor, que precisa contemplar o período de crise, pois as atividades que envolvem a cultura serão as últimas a voltar”, ressalta a professora Rosimeri Carvalho, do Programa de Pós-Graduação em Administração da UFRGS e pesquisadora do Obec. Segundo ela, mecanismos como a Lei Aldir Blanc são indispensáveis não somente para garantir a sobrevivência das pessoas, mas também para manter o setor minimamente vivo, com condições de renascer ao final da pandemia.

O fechamento de postos de trabalho – a pesquisa mostra que 65,8% das organizações tiveram que fazer algum tipo de redução de contratos e metade precisou demitir funcionários – agrava a precarização da atividade. De acordo com o levantamento, mais de 80% dos profissionais da cultura que responderam à consulta não possui vínculo empregatício formal: atuam por projetos, sem garantias ou proteção. A maior parte revelou receber até três salários mínimos e 31,5% calculava trabalhar mais de 45 horas semanais antes da pandemia. Uma parte importante desse contingente, atingido em cheio pela necessidade de distanciamento social, vai acabar migrando para outras áreas, segundo Carvalho. “Se essas pessoas não forem auxiliadas, não teremos nem mão de obra para reconstruir o setor ao fim da crise”, alerta.

Promulgada no dia 13 de agosto, a Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc (homenagem ao músico e compositor carioca que morreu no início de maio, vítima da Covid-19) determina a liberação de R$ 3 bilhões em auxílio financeiro a artistas e a estabelecimentos culturais durante a pandemia. O dinheiro é gerenciado por Estados e municípios e deve ser aplicado em renda emergencial para os trabalhadores e em ajuda para a manutenção de espaços culturais. Editais e premiações também podem utilizar os recursos.

Mas a Lei Aldir Blanc – a esperança real para quem está sem renda e sem poder trabalhar – ainda esbarra na burocracia e na falta de organização da classe. Conforme mostra a pesquisa, apenas 37% das organizações e 40% dos indivíduos participam de associações, sindicatos ou outros organismos representativos na área cultural, o que dificulta o acesso aos mecanismos de auxílio, como o da lei. “Ainda vemos que o auxílio não está chegando como deveria na ponta, especialmente àquelas pessoas que não estão familiarizadas com os meios digitais e com a burocracia necessária para o cadastramento. Os governos precisam fazer uma busca ativa desses profissionais, o que em muitas cidades não tem acontecido”, comenta Carvalho.

De acordo com informações da Secretaria de Estado da Cultura (Sedac), o Rio Grande do Sul receberá cerca de R$ 155 milhões para auxiliar todos os setores da economia criativa. Desse total, R$ 69,7 milhões vêm para o Estado, por meio da Sedac, e R$ 85 milhões serão distribuídos aos municípios. Os recursos poderão ser disponibilizados por meio de editais, chamadas públicas ou agente financeiro. Desde o dia 12 de agosto está no ar o cadastro para os profissionais no site da Secretaria. Os espaços culturais e organizações devem procurar as prefeituras para buscar os recursos.

Em busca dos trabalhadores

Para encontrar os trabalhadores e as organizações responsáveis por espaços culturais, o governo do Estado e as prefeituras estão se articulando para atingir a meta de distribuir todo o montante de recursos da Lei Aldir Blanc até o final do ano, período de vigência da legislação. Para encontrar os trabalhadores que não têm acesso aos meios digitais para fazer o cadastro, a Sedac está atuando em conjunto com a Famurs e o Conselho dos Dirigentes Municipais de Cultura (Codic), com o objetivo de identificar os indivíduos e os encaminhar para o cadastro. A última preliminar (15/9) indicava que mais de 2 mil trabalhadores do setor já estavam cadastrados, mas o número ainda não é final.

Com relação ao cadastro das organizações para chamamentos e editais, cuja responsabilidade é das prefeituras, cada município precisa se organizar para cadastrar os agentes e liberar os recursos. Porto Alegre já formou um grupo de trabalho que vai homologar os projetos e definir a destinação dos recursos. Segundo a Secretaria Municipal de Cultura, a capital deve receber R$ 9,2 milhões para atender às organizações culturais com editais e chamamentos.

Profissionais e organizações se mobilizam em busca do futuro

Mesmo diante do cenário desolador, boa parte do setor criativo não ficou paralisada durante a interminável quarentena. A pesquisa do Obec demonstra que 45,1% dos trabalhadores individuais e 42% das organizações estão desenvolvendo novos projetos, que vão desde adaptações de seus produtos para internet até a criação de novos conteúdos e formatos. Ainda de acordo com o levantamento, 12% dos indivíduos e 18% das empresas apostaram na criação de fontes de receita até então nunca adotadas, como antecipação de ingressos, campanhas de doação e financiamento coletivo.

Na opinião da professora Daniele Canedo, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, até nesse ponto os governos precisam atuar, liderando a reestruturação do setor e oferecendo capacitação para que os trabalhadores e agentes culturais consigam se adaptar ao novo momento que se impôs com a pandemia. Segundo Canedo, muita gente ainda não tem intimidade com o ambiente digital, o que dificulta desde o acesso aos recursos emergenciais até a inserção delas nas novas modalidades culturais possibilitadas pela internet.

“Outra coisa que precisamos considerar é que nem todos irão conseguir migrar para a internet. Existem desafios enormes, como a venda de ingressos virtuais ou a obtenção de patrocínio. Nem todos os artistas conseguirão sobreviver assim”, destaca. Entram aqui, novamente, os mecanismos de fomento cultural, como editais e projetos subvencionados pelas leis de incentivo.

A pesquisa demonstra que, mesmo antes da pandemia, essa modalidade de financiamento não era alternativa para a maioria do setor criativo: 18% das organizações e 27% dos indivíduos toca suas atividades sem qualquer apoio de mecanismos de financiamento público; 62% das organizações e 75% dos indivíduos afirmaram nunca ter se beneficiado de recursos advindos de incentivo fiscal federal, estadual ou municipal.

O levantamento revela ainda que os setores que mais acessam esses mecanismos de apoio são audiovisual (72%) e teatro (87,5%). “Somente os agentes mais profissionalizados, capazes de enfrentar a burocracia estatal, têm condições de acessar recursos públicos para o financiamento de seus projetos. Os demais atuam por conta própria, na dependência direta do público. É por isso que, mais do que o auxílio emergencial, que é vital, os governos precisam pensar em políticas que estimulem o consumo de cultura pelas pessoas, em suas casas. A sobrevivência da economia criativa depende disso”, completa Canedo.

O relatório final ainda não foi publicado no site da pesquisa. O boletim preliminar mais recente pode acessado aqui.

Destaques da pesquisa

  • 80,7% dos profissionais da cultura não possui vínculo empregatício formal, recebiam até três salários mínimos e 31,5% trabalhavam mais de 45 horas semanais antes da pandemia.
  • 71,2% dos indivíduos e 77,8% das organizações só tinha reservas financeiras para garantir sua subsistência por três meses.
  • 37% das organizações e 40% dos indivíduos participam de associações, sindicatos ou outros organismos representativos na área cultural.
  • 78% dos respondentes cancelaram entre 50% e 100% de suas atividades em abril. Em maio, esse percentual foi de 76%.
  • Em média, 83,7% das organizações e indivíduos alegam terem sido muito impactados pela suspensão de atividades e indicam maior dificuldade de captação de recursos junto a entidades privadas e públicas.
  • 65,8% das organizações tiveram que fazer algum tipo de redução de contratos e 50,2% teve que demitir colaboradores.
  • 88,7% dos indivíduos e 86,8,% das organizações acreditam que as atividades ficarão restritas até o fim de 2020 ou ainda mais além.
  • 87,4% das organizações acreditam que suas receitas estarão comprometidas até o final deste ano. Metade deste grupo acredita que a diminuição segue em 2021.
  • Apesar da paralisação de atividades, o setor seguiu criando. Tanto indivíduos (45,1%) quanto organizações (42%) estão desenvolvendo novos projetos e produtos.
  • 12% dos indivíduos e 18% das organizações investiram na criação de fontes de receita até então nunca exploradas.
  • A principal medida citada pela maioria como saída para o período de crise é o auxílio emergencial.

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