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Tradutor de libras rouba a cena em festivais de música

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Tradutor de libras rouba a cena em festivais de música Foto: Ana Motta/AllDub

Com um line up liderado por ídolos da música brasileira, como Alceu Valença e Caetano Veloso, o Festival Turá, realizado em Porto Alegre nos dias 18 e 19 de novembro, lançou para o estrelato um novo artista. Do cantinho dos telões, Daniel Thorn, tradutor de libras, chamou a atenção do público com suas interpretações super performáticas.

O intérprete trabalha com a língua brasileira de sinais há sete anos, e nos últimos dois especializou-se na tradução artística. Para passar toda a emoção de um show de música sem emitir um único som ele conta com todo o seu corpo. E o resultado tem feito Daniel fazer sucesso não só entre as pessoas surdas. Seu trabalho, que também roubou a cena no Primavera Sound, com shows de The Killers e The Cure em São Paulo, viralizou nas redes sociais.

Conversamos com Daniel Thorn nesta semana, por e-mail. Leia a entrevista a seguir.

Como começou a sua trajetória como intérprete de libras? 

Atuo há sete anos com libras, em diversas áreas como a de educação e a jurídica, mas há dois anos tenho me especializado na tradução artística. Comecei muito cedo a me interessar pela linguagem de sinais, pois frequentava uma igreja onde tinha contato com pessoas surdas, e lá comecei a achar incrível como era possível se comunicar sem falar uma só palavra. Sempre fui muito agitado e adoro artes, performances artísticas. Tem tudo a ver comigo a tradução de shows.

Você acompanhou a repercussão do seu trabalho nas redes sociais recentemente? Como se sente?

Eu estou muito surpreso com toda a repercussão. Nunca imaginei viralizar nas redes assim. É algo que me deixa muito feliz e realizado profissionalmente. Ver pessoas de diversos lugares, histórias e caminhos, que puderam, através do show do The Cure, conhecer um pouco do meu trabalho como tradutor de libras. Fico muito emocionado e grato pelo carinho de todos que puderam, através de mim, curtir de forma diferente o show dessa banda incrível.

Qual é o retorno da comunidade surda sobre o teu trabalho?

Eles querem e adoram curtir o show com muita visualidade e performance. Sempre estou com eles em eventos, shows e festivais, atento a novidades da cultura. Eles falam o que eu preciso melhorar para atender às suas vontades e desejos sobre a música em libras. Meu objetivo é que eles possam curtir de forma tranquila, com suas subjetividades.

Como você avalia a inclusão de surdos em grandes eventos nos últimos anos?

Acessibilidade ainda é algo muito novo na cena cultural. Faltam informações sobre o nosso trabalho, e também encontramos muitas barreiras, como o preconceito sobre libras e lugares que ainda não aceitam acessibilidade em eventos e shows.

Qual o maior desafio de um intérprete nesse tipo de evento?  

Tenho mais facilidade em traduzir shows de pop e rock. Para mim é mais desafiador traduzir shows de funk. Mas adoro meu trabalho, que é proporcionar às pessoas que curtam os shows, então não vejo dificuldades.

Show de Alceu Valença no Festival Turá. Foto: Ana Motta/AllDub

O quanto a performance é importante no seu trabalho?

Para os surdos, trazer o corpo, as mãos, todo esse emaranhado de formas para libras é algo incrível. A libras é uma língua totalmente visual e espacial. Na tradução, passamos pelo nosso corpo, por nossas mãos, o que a música provoca, seus contornos melódicos. Vejo como um caminho para atrair públicos. Para mim, performar é como a poesia, com suas interpretações e vivências a serem conhecidas por diversos corpos em suas ideias e trajetórias de vida. 

Como é a preparação momentos antes de interpretar e traduzir músicas?

Procuro fazer uma imersão no mundo do artista que vou traduzir, entender as mensagens e contextos importantes. Estudo para saber o que a pessoa surda gostaria de saber e ver no show. Compreender de forma geral e deixar espaços para interpretações que a música nos provoca de forma bastante subjetiva.

Para o show do The Cure, eu fiquei dias, semanas ouvindo as músicas, lendo as letras e conhecendo a história da banda. Ter uma base de vivências auxilia muito o nosso trabalho em performar em libras o que os artistas querem e às vezes não querem expor também.

Em shows internacionais, conseguimos traduzir mais facilmente do inglês ou espanhol. Em outras línguas, damos maior foco ao contexto, ao que o artista gostaria de dizer, ao contexto dele e de sua obra.

Quais são as diferenças entre fazer uma tradução de cima do palco e no estúdio com chroma key?

No chroma key geralmente realizamos a tradução em estúdio (com câmera, televisão e caixa de som e fones – para ouvirmos somente a voz do cantor). Nisso, estamos mais distantes do palco e não temos como interagir com o artista.

No palco, estamos localizados geralmente no lado esquerdo e próximo ao retorno de áudio para poder realizar o trabalho. Lá em cima, podemos interagir com a banda, o que, ao meu ver, torna o espaço e o evento mais inclusivo e acessível para o surdo. Particularmente, gosto de atuar no chroma key, pois o alcance para os surdos é maior. No telão ele pode assistir ao show de onde estiver com conforto e tranquilidade.  

Como é a interação no palco com os artistas?

Eu adoro! Fico muito feliz quando algum artista vem e começa a sinalizar ou a cantar pertinho da gente. Isso traz alegria principalmente para o surdo em poder curtir o seu artista predileto. Para mim é uma curtição total! O show fica muito mais animado e inclusivo.

Como equipe, estamos lá para, junto dos artistas, proporcionar uma experiência excelente ao público. É o mesmo objetivo, nesse sentido. Então é muito legal quando o artista vê nosso trabalho e interage com a gente. Já troquei com muitos artistas ao final das apresentações.

Você tem alguma inspiração no mundo das artes, música ou até mesmo na tradução em libras?  

Gosto muito de performances artísticas, poesia, sou movido pela arte. Na música, curto rock e todos os seus estilos. Tratando sobre a(s) cultura(s) surdas, gosto muito de um tipo de performance chamada Visual Vernacular (VV) que tem como ideia “traduzir pelo corpo” a manifestação espacial, subjetiva e empírica de algum objeto, corpo, pessoa. É algo que tenho estudado e me inspirado para o trabalho como tradutor.

Você vê a tradução e interpretação em libras como uma arte?

Sim. Vejo como acessibilidade artística! Um tipo de fruição cultural.

Vídeo: Marcela Donini

Se você pudesse escolher um artista para traduzir, quem seria?

Já tive a honra de interpretar grandes nomes da música brasileira. Mas, como um intérprete que gosta muito de performances, gosto das obras que me permitem explorar mais o meu trabalho e a minha entrega. O show do The Cure foi um dos que mais gostei de interpretar, foi uma realização mesmo, porque adoro a cena gótica. Me deu a liberdade de expressar sentimentos mais intensamente.

Quais os artistas mais famosos que já traduziu? E os shows que mais curtiu fazer? E os mais difíceis?

Já interpretei Planet Hemp, Pitty, CPM22, Marcelo D2, Bala Desejo, Criolo, Emicida, Alceu Valença, Caetano, Maria Bethânia, Gilberto Gil, Joelma, Duda Beat, entre muitos outros. Gostei muito de traduzir o show do Planet Hemp, no festival João Rock, que teve bastante repercussão, e, claro, o The Cure, no Primavera Sound. Os mais difíceis são de bandas de outros idiomas que não sejam o inglês, espanhol e português.

Além dos eventos que participa, tem algum projeto futuro que gostaria de realizar como intérprete de libras?

Um sonho que desejo alcançar é realizar o Festival Summer Breeze Brasil e Rock in Rio, quem sabe também o Wacken Open Festival (maior festival de Metal do mundo) como tradutor de libras.

A área de tradução artística é algo que me fascina e me permite realizar com alegria e diversão. Também trabalho com libras em outras áreas. Mas pretendo seguir com o foco em eventos e grandes festivais. Tenho parceria com a All Dub, que é uma empresa que atua com acessibilidade em diferentes eventos, congressos, festivais, de CCXP a Primavera Sound, Festival Turá, em Porto Alegre e São Paulo, João Rock, MITA, Lollapalooza, Festival de Inverno no Rio, etc.

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