Reportagens | Televisão

Série “Filhos da Liberdade” viaja no tempo em busca de ancestralidade negra e quilombola

Change Size Text
Série “Filhos da Liberdade” viaja no tempo em busca de ancestralidade negra e quilombola Laila Garroni em "Filhos da Liberdade". Foto: Colateral Filmes

Estreia nesta sexta-feira (8/3), Dia Internacional da Mulher, às 21h, na TV Brasil e na TVE RS, a série Filhos da Liberdade, dirigida por Fabrício Costa Cantanhede e Mariani Ferreira. Gravada em Porto Alegre e região metropolitana, a produção é a primeira série ficcional dirigida por uma mulher negra no RS e conta a história de Amara (Laila Garroni), que retorna às suas origens quilombolas.

A protagonista é uma enfermeira e mãe solo que tem a vida transformada quando volta ao Quilombo do Sopro (RS), onde nasceu e cresceu e busca suas raízes para salvar a filha Keliane (Isa Xavier). Nessa jornada, Amara descobre que pode viajar no tempo, voltando à época em que o quilombo foi criado, logo após o Massacre de Porongos (1844), que vitimou os Lanceiros Negros no final da Revolução Farroupilha (1835-1845).

Garroni conta que não precisou se esforçar para memorizar as falas de Amara. “Isso mostra como todo o processo de criação da personagem foi orgânico. Era como se ela já estivesse dentro de mim ou como se eu a entendesse tão bem que não era necessário um esforço para reproduzi-la”, conta a atriz, que construiu sua carreira em palcos de teatro no Brasil e nos Estados Unidos, onde trabalhou com cinema e teatro por sete anos.

“Desenvolvi um carinho genuíno pela Amara, como se ela fosse uma amiga, uma confidente. Alguém com quem eu dividi momentos de muita dor e revolta, mas também de muita coragem. Ela atendeu ao chamado da sua ancestralidade, uma responsabilidade que nem todo mundo aceita. Deixar o nosso lugar de nascimento e pertencimento requer coragem, mas retornar, ainda mais”, completa Garroni, que estrela a série com Cássio Nascimento, Cláudia Barbot, Kaya Rodrigues, Paula Souza, Vera Lopes e Sirmar Antunes (1955-2022) – atuando em sua última série no papel de pai da protagonista.

Sirmar Antunes em “Filhos da Liberdade”. Foto: Colateral Filmes

Produzida pela Colateral Filmes e financiada pelo Fundo Setorial do Audiovisual por meio do Edital TVs Públicas, Filhos da Liberdade tem cinco episódios e marca a estreia de Mariani Ferreira e Fabrício Costa Catanhede como diretores de televisão. “Foi um processo árduo e prazeroso. Árduo pois tivemos que lidar com um orçamento pequeno para uma ideia tão desafiadora. Enfrentamos dias intensos de calor no meio de uma fazenda que estava há quilômetros de Porto Alegre, onde a maioria da equipe morava. E prazeroso, pois foi nossa primeira direção de série, então as adversidades e desafios logo eram combatidos pela perseverança do que estava por vir”, recorda o diretor.

Passado e presente na tela

Integrante do Macumba Lab, coletivo que reúne profissionais negros do audiovisual no RS, a diretora da série ressalta a viagem no tempo de Filhos da Liberdade, que lança luz sobre a memória da população negra: “A história da Amara não deixa de ser uma alegoria para algo que pessoas negras na Diáspora enfrentam. Estamos inseridos e submetidos a um sistema racista, colonial, que nos adoece e sequestra nossa memória. Sem essa memória de onde viemos, ficamos impedidos de recorrer às nossas ferramentas ancestrais para resistir a esse sistema e essa lógica colonial” – leia a íntegra da entrevista a seguir.

Laila Garroni e Vera Lopes em “Filhos da Liberdade”. Foto: Colateral Filmes

Garroni também refletiu a respeito de sua ancestralidade durante as gravações: “Muitas vezes, me peguei olhando para aqueles vastos campos, pensando em quem tinha pisado antes naquele solo. Uma reflexão que não é nova para mim, e que por muito tempo me trouxe revolta e dor, mas que hoje me faz acessar uma força e inteligência ancestral que apara a minha conduta e me mantém certa da minha missão de vida”.

“Gostaria que pessoas brancas fizessem esse mesmo exercício de olhar para trás, e não só meditar sobre os feitos dos seus ancestrais, mas também perceber o que o povo negro trouxe e construiu no nosso estado e país”, propõe Garroni.

“Minha expectativa é que consigamos marcar nossa presença e força no audiovisual negro nacional, para que muito mais produções nasçam aqui e ganhem o país inteiro – até, quem sabe, a clássica frase ‘tem preto no Sul’ ser extinta por ter se tornado extremamente óbvia”, vislumbra a atriz, que recentemente foi selecionada para a residência de escritores da Library Of Africa and The African Diaspora, em Gana, de onde enviará conteúdos exclusivos de sua experiência pelo serviço de assinatura Clube de Gana.

“A emancipação do povo negro passa por se reconectar com suas raízes”

A diretora Mariani Ferreira. Foto: Naira Valente

Nascida em 1988, Mariani Ferreira começou a vida laboral como trabalhadora doméstica e operária numa fábrica de calçados. Formou-se em Jornalismo pela Ulbra como bolsista do ProUni. Seu primeiro curta, Léo (2015), venceu o edital Jovens Produtores e Diretores Negros, lançado pelo Ministério da Cultura em parceria com a Fundação Palmares. A estreia nos longas foi como roteirista e produtora do documentário O Caso do Homem Errado (2017), de Camila de Moraes – que rompeu um hiato de 24 anos sem longas dirigidos por mulheres negras em salas comerciais brasileiras.

Desde 2018, Ferreira é roteirista da Rede Globo. Atualmente vive em São Paulo, integra a Oficina de Novela das 18h, tendo colaborado com o roteiro da novela Amor Perfeito. Em 2023, concluiu Filhos da Liberdade e a animação Histórias Atrás da Porta, da qual é criadora, roteirista e codiretora ao lado de Gautier Lee e Rodolfo de Castilhos. Protagonizada por uma menina negra, a produção de 13 episódios deve estrear neste ano nas plataformas de streaming.

Leia a entrevista com Mariani Ferreira.

Como foi desenvolvida a trama de “Filhos da Liberdade”?

Começamos a pensar Filhos da Liberdade em 2015. A ideia era criar uma trama protagonizada por personagens negros e que misturasse passado e presente. Quando finalmente começamos a escrever a série, já em 2022, surgiu a ideia de usarmos elementos fantásticos, como a viagem no tempo, para entrelaçar passado e presente. Foi então que Amara se tornou nossa protagonista.

Amara vive uma história de reconexão com sua ancestralidade. Poderia nos falar sobre algumas questões vividas pela personagem?

Amara perde a mãe cedo e acaba se afastando do quilombo onde nasceu, por não conseguir lidar com essa dor. Ela abandona suas raízes e uma parte dela mesma fica para trás. Quando retorna, anos depois, sua filha morre num atropelamento criminoso. Amara então busca justiça, não só por sua filha, mas também por sua mãe. Para isso, ela precisa se fortalecer, e encontra sua força na reconexão com sua ancestralidade – aceitando que ela saiu do quilombo, mas o quilombo nunca saiu dela.

A história da Amara não deixa de ser uma alegoria para algo que pessoas negras na Diáspora enfrentam. Estamos inseridos e submetidos a um sistema racista, colonial, que nos adoece e sequestra nossa memória. Sem essa memória de onde viemos, ficamos impedidos de recorrer às nossas ferramentas ancestrais para resistir a esse sistema e essa lógica colonial. Acho que a emancipação do povo negro passa por se reconectar com suas raízes, assim como Amara o fez.

Tempo e história são dois elementos centrais do enredo. De que forma vocês procuraram tratá-los na série?

A ideia é mostrar uma concepção de tempo e espaço afrocentrada. Onde o tempo não é linear. Não sendo linear, esse tempo pode mudar. Já ouviu o ditado “Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje”? Se olharmos para concepção de tempo eurocentrada, todas as injustiças e desencontros do passado ficam sem solução. Mas ao olharmos para essa concepção espiralar do tempo, nós damos conta de que, sim, o passado pode ser reparado. Da mesma forma, a série busca fugir da história oficial, tentando contar as narrativas daqueles que não foram transformados em estátuas.

Como abordar um trauma coletivo como a escravidão trazendo à tona uma postura de resistência e emancipação?

A ideia, na realidade, é não explorar os traumas da negritude. Por isso, quando encontramos as pessoas escravizadas na série, elas já estão planejando a sua fuga. Não queremos revitimizar o público negro. Todas as pessoas negras em Diáspora precisam lidar com o legado da escravidão transatlântica. Não queremos, porém, que a dor seja nossa protagonista. E sim a resistência.

Em um post de 2023 sobre uma cena da novela “Amor Perfeito”, você comentou: “Ser uma mulher negra e descobrir que temos direito ao amor é transformador”. Gostaria que você comentasse de que forma “Filhos da Liberdade” aborda questões afetivas.

Uma das personagens da série fala sobre o que a manteve viva durante os anos em que foi escravizada. Ela se dá conta de que foi o amor, a consciência de que merecia mais do que a realidade avassaladora à qual estava submetida. Em Filhos da Liberdade, nossos personagens criam redes através do afeto e, com isso, se tornam mais fortes. É muito transformador ver personagens, transformados em mercadoria, entendendo que podem amar e que merecem ser amados de volta.

Por fim, a série também coloca em pauta questões de representação e representatividade na cultura, especificamente, no setor audiovisual. Gostaria de uma reflexão tua a esse respeito. Qual papel a série pode desempenhar nesse contexto?

Filhos da Liberdade existe como fruto de uma luta que começa há muito tempo, com a Frente Negra, em 1930, o Movimento Negro Unificado, nos anos 1960-70, entre outros. Esses movimentos sempre lutaram pela inclusão de pessoas negras e o acesso delas à produção cultural e educação. Agora, espero que a série mostre para o nosso mercado audiovisual que narrativas protagonizadas por pessoas negras e equipes comandadas por pessoas negras podem resultar em produtos de qualidade. Minha maior expectativa é que tenhamos logo a segunda, terceira, quarta série dirigida por mulher preta no RS – e que não pare por aí.

Gostou desta reportagem? Garanta que outros assuntos importantes para o interesse público da nossa cidade sejam abordados: apoie-nos financeiramente!

O que nos permite produzir reportagens investigativas e de denúncia, cumprindo nosso papel de fiscalizar o poder, é a nossa independência editorial.

Essa independência só existe porque somos financiados majoritariamente por leitoras e leitores que nos apoiam financeiramente.

Quem nos apoia também recebe todo o nosso conteúdo exclusivo: a versão completa da Matinal News, de segunda a sexta, e as newsletters do Juremir Machado, às terças, do Roger Lerina, às quintas, e da revista Parêntese, aos sábados.

Apoie-nos! O investimento equivale ao valor de dois cafés por mês.
Se você já nos apoia, agradecemos por fazer parte da rede Matinal! e tenha acesso a todo o nosso conteúdo.

Compartilhe esta reportagem em suas redes sociais!
Share on whatsapp
Share on twitter
Share on facebook
Share on email
Se você já nos apoia, agradecemos por fazer parte da rede Matinal! e tenha acesso a todo o nosso conteúdo.

Compartilhe esta reportagem em suas redes sociais!
Share on whatsapp
Share on twitter
Share on facebook
Share on email

Gostou desta reportagem? Ela é possível graças a sua assinatura.

O dinheiro investido por nossos assinantes premium é o que garante que possamos fazer um jornalismo independente de qualidade e relevância para a sociedade e para a democracia. Você pode contribuir ainda mais com um apoio extra ou compartilhando este conteúdo nas suas redes sociais.
Share on whatsapp
Share on twitter
Share on facebook
Share on email

Se você já é assinante, obrigada por estar conosco no Grupo Matinal Jornalismo! Faça login e tenha acesso a todos os nossos conteúdos.

Compartilhe esta reportagem em suas redes sociais!

Share on whatsapp
Share on twitter
Share on facebook
Share on email
PUBLICIDADE

Esqueceu sua senha?