Em 2004, capitaneado pelo diretor teatral Luciano Alabarse e pela professora Kathrin Rosenfeld, austríaca radicada em Porto Alegre, um grupo de 40 pessoas – entre atores, bailarinos, cantores e equipe técnica – embarcou em uma profunda imersão no mundo grego clássico de 25 séculos atrás de Sófocles e sua Antígona. Um dos processos mais complexos de criação dessa montagem gaúcha da tragédia da princesa tebana que luta para enterrar o irmão morto – que lotou o Theatro São Pedro em sua temporada – foi musicar os coros do original, traduzidos direto do grego por Lawrence Pereira.
Com foco no texto e preocupado em não alterar sua métrica ou seus acentos, o compositor Arthur de Faria criou uma música basicamente atonal, por vezes tonal, outras politonal ou modal, distorcida, lírica e misteriosa. Levar uma construção textual e musical tão intrincada ao palco exigiu um trabalho intenso de meses de ensaio do coro com o músico Marcelo Delacroix.
A base instrumental, por sua vez, foge do convencional da música de câmara. Arthur de Faria evitou o caminho da especulação sobre o que seria a música na Grécia da época de Sófocles. A trilha sonora utiliza instrumentos do nosso tempo, boa parte deles associados à música popular: percussão, saxes soprano e barítono, guitarra processada com uma infinidade de pedais, sitar indiano e viola, também processados. Arthur tocou baixo elétrico em uma faixa.
Essa trilha sonora de Antígona nunca foi lançada “oficialmente”. Foi prensado um CD, vendido somente nas apresentações da peça e em shows, mas nunca foi para nenhuma loja, plataforma ou teve qualquer espécie de divulgação de imprensa. Agora, finalmente, o trabalho está disponível nas plataformas todas, graças à gravadora ybmusic.
Arthur de Faria é compositor, arranjador, cantor, pianista, produtor de discos, pesquisador e doutorando em literatura brasileira na UFRGS com tese sobre Lupicínio Rodrigues. Produziu 30 discos, participou de outros 50, lançou 17 álbuns e EPs, escreveu 60 trilhas para cinema e teatro, arranjou para duas dezenas de artistas – de Fernanda Takai a Siba –, e teve peças suas interpretadas por orquestras como a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre. Escreveu nove publicações, entre elas o livro Elis – Uma Biografia Musical.
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Na entrevista a seguir, Arthur de Faria relembra o processo de criação e gravação de Antígona, comenta a respeito de vários dos seus muitos projetos e revela os desafios que ainda almeja enfrentar: “São as duas únicas coisas que eu sonhei escrever toda a vida e ainda não escrevi: um balé e uma ópera/musical do mal. Não morro sem fazer”.
Como foi o processo de criação da música de Antígona? Você contou com a colaboração do diretor Luciano Alabarse e do tradutor do texto grego Lawrence Pereira?
Tive total liberdade do Luciano, pra fazer como eu quisesse. Peguei o tradução do Lawrence e decidi que não mudaria uma única sílaba. É um puta desafio, e eu adoro puta desafios. Quem mandou em tudo foi o texto, o tempo todo. Ele trazia a melodia. E, em alguns trechos em que eu achava que a melodia falada era insuperável, que aquilo não ficaria melhor cantado, deixei falado mesmo.
A partitura não busca recriar ou citar a possível música grega de 2,5 mil anos atrás, época em que foi escrita a tragédia. Explique essa opção estética, por favor.
Não se sabe, não tem como saber exatamente como era essa música. O que existem são suposições. Então, ignorei completamente qualquer pastiche possível feito 25 séculos depois, no Novo Mundo. A montagem tampouco queria de alguma forma ter um clima “de época”. Tudo era muito estilizado. Isso me deixou livre pra ouvir tudo o que o texto dos coros ia me sugerindo. Tudo que apareceu, eu abracei, sem medo de ser feliz.
A trilha sonora vai da atonalidade à politonalidade, do lírico ao distorcido, utilizando instrumentos como saxofones, percussões e guitarras. O resultado sonoro lembra uma ópera eletroacústica com ecos de Jocy de Oliveira, Frank Zappa, Stravinsky e Arrigo Barnabé. Quais foram suas referências musicais nesse trabalho?
Acertou tudo, ehehhehe. Só faltou o Pierrot Lunaire do Schönberg, Black Sabbath e o System of a Dawn – que era a minha paixão daquele momento. Não acho que musicalmente tenha relação direta com as coisas de câmara do Stravinsky, como o Ragtime ou A História do Soldado, mas o clima, sim. Jocy eu fui conhecer melhor depois – esse trabalho tem mais de 15 anos –, e realmente tem a ver. O Zappa erudito, que é o menos conhecido, dos discos sinfônicos ou com o Ensemble Modern, certamente. Agora, especificamente com o Arrigo tem duas historinhas. A primeira é que eu não acho que Antígona tenha a ver com os discos clássicos do Arrigo. (Ok, tem o trechinho repetido “Palavras Imortais! Tebanas Ruas!”, que é 100% Arrigo.) Mas daí, quando fui ouvir as missas que o Barnabé escreveu, e fui ouvi-las DEPOIS de ter feito a Antígona, me caiu o cu da bunda. Tinha MUITO a ver. Mas talvez, nesse caso, porque a gente venha dos mesmos lugares, dos mesmos Stravinsky, Bartók, Schönberg… A outra historinha é que o Arrigo conhece alguns discos meus, mas o trabalho do qual ele volta e meia fala é justamente… essa Antígona.
Quais foram as maiores dificuldades enfrentadas para musicar o texto de Antígona?
Nussasinhora, como diria um mineiro. Muitas. Ler e reler e reler em voz alta até entender o sentido não só de métrica e a melodia intrínseca de cada coro, como o sentido mesmo, o que queriam dizer aqueles versos. A tradução do Lawrence é muitíssimo erudita, e a gente estudou por meses com a Kathrin Rosenfield pra decifrar cada significado da peça toda. Depois veio a parte da realização. Sempre que eu escrevo música pra teatro eu chamo ou o Marcelo Delacroix ou a Simone Rasslan pra trabalharem com os atores/cantores. É bom porque daí todo mundo pode me xingar bastante, pelas costas. O nível de dificuldade ali é muito, mas muito alto. Tanto na parte instrumental – principalmente as guitarras, a cargo do Marcelo Corsetti e do Angelo Primon – quanto na parte das vozes. Foram meses de trabalho, e depois muito trabalho no estúdio. Nada ali era fácil, ainda que a gente tivesse um time espetacular de cantorxs. O Marcelo fez um trabalho magnífico. E nunca vou esquecer da declaração do Angelo, suando, depois de gravar perfeitamente um take de um trecho nada fácil: “Olha, Art, acabo de passar pelos quatro compassos mais difíceis da minha vida. Ehehehehehe”.
Você tem um extenso currículo de composições musicais para espetáculos de teatro e dança, filmes e produções televisivas. A experiência com Antígona não o instigou a criar uma obra própria de estilo mais operístico?
Muito. A Antígona, do Luciano Alabarse, e A Tragédia Latino-Americana, do Felipe Hirsch, são dois trabalhos que ficaram muito próximos do meu sonho dourado de escrever alguma coisa híbrida entre a ópera e o que eu chamo de “Musical do Mal”. São as duas únicas coisas que eu sonhei escrever toda a vida e ainda não escrevi: um balé e uma ópera/musical do mal. Não morro sem fazer. Uma coisa me encantaria muito: as cartas que Miss Jemima Kindersley escreveu para uma amiga, inglesa como ela, no século 18. São os primeiros documentos escritos por uma mulher sobre o Brasil. Eu musiquei algumas delas para o espetáculo Selvageria, também do Felipe Hirsch. Umas 15 páginas de texto em prosa de uma lucidez assustadora sobre o que já era, o que sempre foi este país. Queria musicar todas e montar.
Quais são seus próximos projetos?
Jisuis. Tantos. Estamos, meu fiel escudeiro Gustavo Breier e eu, finalizando o disco inacabado que o Arhur de Faria & Seu Conjunto deixou pra trás quando encerrou atividades, em 2015. Lançamos uma faixa este ano, Lousa Nua, parceria minha com o Nelson Coelho de Castro, com participação do Erick Endres no baixo e do cantautor português João Rui na voz. Tá nas plataformas. Daqui a um mês sai a segunda faixa, El Fakir, parceria com o argentino Acho Estol, do La Chicana, novamente com o Erick no baixo e o próprio Acho tocando um violino árabe e um alaúde chinês. O Seu Conjunto – Julio Rizzo no trombone, Adolfo Almeida Jr. no fagote, Marcão Acosta na guitarra, Jorge Matte na bateria – deve lançar umas 10 músicas, aos poucos (gravamos 14).
Também tá em fase de mixagem o álbum de estreia da Tum Toin Foin, gravado na Audio Porto ano passado e que vai sair pelo selo deles. É a minha banda atual, minha orquestra de sonho, e a gente recentemente ouviu as gravações pela primeira vez – atropelados que fomos todos por este apocalipse – e ficamos todos muito orgulhosos uns dos outros.
Por fim, eu, confinado, me obriguei a finalmente ter um bom microfone e programas de gravação no computador para poder gravar em casa. Com isso, vou fazer uma coisa que me pedem há tempos: um disco só de piano e vozes. Tenho a sorte imensa de ter em casa uma atriz que canta muito melhor que eu, a Áurea Baptista – que tá no disco da Antígona, inclusive –, que vai cantar várias. Eu vou cantar outras e algumas parceiras talvez gravem em suas casas. Tô escolhendo o repertório, mas a regra é só músicas que eu nunca gravei. Tem umas 10 que eu fiz agora na pandemia e mais umas tantas de diversas épocas.
No mais, escrevendo meu doutorado em Literatura Brasileira pela UFRGS, que é uma biografia do Lupicínio, bem focada na música e com muito de Porto Alegre e do Brasil no entorno.
E os textos que eu tenho finalizado para a Parêntese, com edição do Fischer, que é também meu orientador de doutorado, vão virar livro. FINALMENTE vou lançar o primeiro volume da minha história da música de Porto Alegre. Vai do começo da cidade até a Era do Rádio. Vai sair pela Arquipélago, que já lançou o meu Elis – Uma Biografia Musical, e que é parte dessa mesma série que eu pretendo que fale da música da cidade até o ano 2000.
No mais vamo indo, né? Trancadaço em casa, esperando a vacina e lendo muito sobre história deste país que a gente fingia que não via que sempre foi assim, foi feito para ser assim, só deixa de ser assim em momentos de distração.