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Cidade Nanquim

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Cidade Nanquim

Ensaio gráfico

A construção do painel que depois veio a ser chamado de Cidade Nanquim foi fruto do acaso. Em 1990, fui submetido a uma pequena cirurgia que, apesar de não constituir uma intervenção grave, exigiu uma recuperação cheia de cuidados: deveria ficar dentro de casa pelo período de um mês, além de evitar o sol, pois fora submetido a uma grande incisão no maxilar e tinha de evitar batidas nesse local. Uma situação chata para uma pessoa inquieta.

Felizmente minha ansiedade foi canalizada para o desenho, e foi dessa forma que comecei a desenhar em folhas A4 uma cidade vista de cima. A escolha desse tamanho de papel se explica pela necessidade de desenhar sem grandes complicações, em geral deitado tendo um pequeno suporte servindo de base. Porém logo o desenho começou a crescer e comecei a fazer emendas que levaram a cidade para outras folhas sucessivamente. Sem planejamento prévio, ao final de meu retiro forçado, eu tinha feito um painel de aproximadamente 40 folhas (dez colunas no comprimento horizontal, cada uma formadas por quatro folhas colocadas uma sobre a outra, formando uma altura de 84 centímetros). Ainda sem nome, tinha nascido a cidade nanquim. Um painel que hoje ainda segue em construção, com aproximadamente 30 metros (a metade do tamanho que penso necessário para retratar esta cidade).

Cada etapa foi executada em períodos que tinham entre si intervalos relativamente longos, algumas vezes abrangendo mais de um ano. Foi o preço que paguei pela liberdade que o trabalho apresenta ao não estar vinculado a nenhum projeto específico. Claro que a produção dos desenhos em momentos diferentes levou a certas descontinuidades formais, mas acredito que justamente aí encontra-se um elemento enriquecedor deste trabalho, ao trazer para o primeiro plano seu caráter de obra ainda em execução e, ao mesmo tempo, salientando seu caráter espontâneo. Na verdade toda cidade é imaginada, sem que nenhum dos seus desenhos tenha sido copiado a partir de referências fotográficas ou desenhos de observação. Essa foi uma das premissas mais importantes deste trabalho que nasceu ao acaso mas se converteu logo numa espécie de jogo pessoal, um teste de habilidades e, ao mesmo tempo, uma grande brincadeira: não desenhar sobre o real ou dentro das regras normais de trabalho, com prazos definidos, metas a alcançar e, sobretudo, esboços.

À cidade caberia ser um território de liberdade, aquele lugar onde busco refúgio das vicissitudes do ofício de desenhista e da vida em geral. Dessa forma cada prédio, logradouro, monumentos e personagens da cidade tem de ser buscado na memória e construído pela imaginação. Logicamente o fato de ser um apaixonado pelas cidades (e ter a sorte de viajar por vários países) ajudou-me a coletar um grande número de imagens ao longo de anos de pesquisa e desenho de observação. Talvez a única exceção seja um cartaz na estação de trem, vagamente inspirado em um cartaz soviético. 

Na verdade, sou um apaixonado pelo universo urbano em geral, mas com certeza a Cidade Nanquim guarda muita influência das duas metrópoles do Prata (as capitais do Uruguai e da Argentina), cidades que me causaram grande impressão desde minhas primeiras visitas ainda adolescente.

Um olhar atento sobre estes cadernos revela inúmeros rascunhos de um bairro muito pobre cujas habitações foram construídas com pedaços da muralha que também acompanha a costa escarpada. Provavelmente essas habitações rudimentares foram construídas com restos da fortificação, praticamente integradas ao seu conjunto. Esse bairro nasceu da observação de antigas cidadelas orientais como a de Istambul, cidade que me fascina. Por isso mesmo esse trecho de muralha que comecei a desenhar a partir de 2005 apresenta nítidos traços orientais, revelados nas cúpulas que dominam algumas de suas torres.

O amontoado de casas que fica entre as pedras da muralha e as curvas dos penhascos foi adquirindo maior densidade com o passar do tempo, construindo um pequeno povoado sobre a costa. Ao longo desse cenário também coloquei um trecho de linha de trem. A cidade busca novos espaços que já estão assinalados nas minhas mais recentes anotações. A costa irá continuar escarpada mas o bairro antigo será seguido de um trecho “virgem” ocupado por um  trecho de floresta. Por sua vez, a linha de trem irá desaparecer em um túnel que passa justamente sob este trecho de mata. Depois desta parte que será praticamente o encontro entre o morro escarpado e o mar, a linha de trem reaparece na saída do túnel, já dentro de outro contexto, um bairro turístico, totalmente à beira-mar, meio caminho para um bairro antigo elegante que indica o extremo “ocidental” do painel. Mas isso é o futuro.













Eloar Guazzelli Filho  – Artista plástico,  quadrinista e diretor de arte para animação. Bacharel em Desenho pela UFRGS e Mestre pela ECA-USP. Fez direção de arte para mais de 20 curtas metragens e o longa “Até que a Sbórnia nos separe”. Foi premiado em Mostras de Artes Gráficas e Festivais de cinema no Brasil e no exterior. Realizou  álbuns em quadrinhos para diferentes editoras e obteve primeiro e segundo lugar do Jabuti 2015 na Categoria Adaptação para os Quadrinhos. Prêmio Esso-SP de Cenografia Teatral em 2018 e professor no curso de Animação da FAAP-SP.

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