Amélia

Lembra da Amélia? A solteira em quarentena. Trabalhava em home office e achou que a pandemia era um retiro espiritual para cumprir a lista de coisas-que-não-podia-fazer-por-falta-de-tempo. Comprou um monte de vibradores e até baixou o tinder na versão beta. Lembra? Viveu muitas crises no seu isolamento sexual, a gente falou sobre ela aqui na Matinal e para quem tem o Pela hora da morte (Jandaíra, 2022) em casa, ela tá lá na página 39. Então, a Amélia anda bem. Como deu uma pirada antes do anúncio do fim da pandemia, ficou afastada da multinacional farmacêutica onde trabalhava no setor de assuntos regulatórios e hoje, como quase todo mundo, tá trabalhando numa drogaria. Se você nunca trabalhou numa farmácia, não sabe o que tá perdendo. Tem tudo lá. Chiclete, fone de ouvido, camisinha e lubrificante. Coca-cola, salgadinho, biscoito e panetone. Fralda, leite em pó, sabonete líquido e colônia. Sem esquecer dos cremes, desodorantes, perfumes, meia-calça, chinelo, picolé, cooler, cadeira de praia e tábua de churrasco. Olha, só não tem ainda cerveja e cigarro, mas ainda tem remédio… então meio que compensa. Quando Amélia foi fazer entrevista na rede onde eu trabalho, só não se sentiu mais humilhada do que a vez que o Armando trocou ela pela prima vesga – o ciúme de Amélia a deixou cega de ódio, ela não enxergou o charme da prima. Fazia meses que eu pedia para ela me passar seu currículo, e ela relutava dizendo que ia conseguir voltar pro seu ramo. Não conseguiu, a pandemia arrasou as indústrias do solo brasileiro, enquanto pipoca uma farmácia por esquina. No meio de maio do ano passado, sem dinheiro, sem auto-estima, sem namorado e com as contas dando volta no varal, igual casa de escritor de cordel, Amélia aceitou minha oferta. Só pra se organizar financeiramente. Agora vai passar o mês fora. Férias no litoral. Amélia tem dessas coisas, eu não julgo. Eu sempre fui pobre, hoje é que ando bem na vida. Ela fez Mackenzie pago, não era bolsista que nem eu. Papai e mamãe criaram aquele bichinho a base de Nam e pão de ló. Festa de debutante. Carro aos 18. Ela só escapou dessa mania de mêsvesário porque somos cria dos anos 90. Amélia passou na entrevista com louvor e veio pra minha filial, porque eu pedi. Por ela podia ser qualquer uma. Farmácia é tudo igual. Não é, eu insisto. Farmácia é um mundo. Farmácia é uma vida. Amélia não estava preparada para o que estava por vir. Nathallia Protazio é escritora e farmacêutica. Autora de Aqui dentro (Venas Abiertas, 2020) e Pela hora da morte (Jandaíra. 2022). Clique aqui e adquira seu exemplar direto com a autora.