Nathallia Protazio
Nathallia Protazio, escritora
Agora Vai

Audre Lorde visitaria Everton Henrique

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Audre Lorde visitaria Everton Henrique Audre Lorde em Berlim, 1990. Foto: Dagmar Schultz
Em seu livro Irmã Outsider (Autêntica, 2019), Audre Lorde está ali reunida em 15 textos. O de abertura intitulado Apontamentos de uma viagem à Rússia é uma crônica. Que alegria perceber, como uma das escritoras que mais me comoveram durante a tormenta que tem sido o mestrado, exposta ali, generosa com suas impressões e palavras. Um dos capítulos que compõe minha dissertação é sobre o gênero Crônica. Isso mesmo, nossa queridinha. Para escrevê-lo eu recorri à alguma teoria, porque precisava referenciar o que sinto. Tipo fazer uma conversa com pessoas que pensaram sobre tudo aquilo que eu acredito ser verdade. As verdades que habitam meus ossos. Porém, a melhor parte era desfilar linhas sobre o meu amor à Crônica. Desconheço algum registro da Audre Lorde sobre seu amor à Crônica. E nem preciso. Ela era uma deusa, poeta, falava a linguagem dos anjos lésbicos que amam. As suas palavras, suas escolhas de estrutura de parágrafo, de transição de assuntos, de evolução temporal, tudo. Cada caractere de sua crônica é uma demonstração de amor.  Seu texto percorre um núcleo reflexivo que abrange toda uma população de mães e intelectuais atemporal: Qual o mundo que estou deixando para meus filhos? Audre Lorde tinha na época dois adolescentes dentro de casa: Beth e Jonathan, sobre quem ela escreveu um ensaio, também muito instigante e sensível, chamado O filho homem: reflexões de uma lésbica negra feminista. Audre Lorde conheceu muitos lugares. Rússia,  África do Sul,  Alemanha, Gana, Caribe, Nigéria. Mas ela nunca esteve no Rio Grande do Sul, mais especificamente em Porto Alegre. Sorte a dela. Esta semana a capital gaúcha foi notícia de novo. Mais uma vez a brigada militar na sua rotina racista de prender o primeiro negro que alguém apontou um dedo. Apontou uma mão, um soco, uma faca, uma arma. Não preciso te contar, esteve em todas as páginas da internet e nos jornais televisivos – isso ainda existe! – Everton Henrique estava trabalhando, um cara branco tentou matá-lo, e ele foi preso. Ai, desculpa… ficou estranho porque usei o pronome e não o nome. Tentaram matar Everton Henrique e ele foi preso. Putz, fiz de novo. Usei o sujeito indeterminado.  Sérgio Camargo Kupstaitis, homem branco, morador do bairro Rio Branco, não gosta de ver entregadores reunidos na frente do seu prédio aguardando as chamadas de trabalho. Sérgio Camargo Kupstaitis foi na sua cozinha. Sérgio Camargo Kupstaitis pegou uma faca. Sérgio Camargo Kupstaitis saiu de casa com a faca. Sérgio Camargo Kupstaitis passou pelos corredores e portas dos seus vizinhos com a faca. Sérgio Camargo Kupstaitis passou pela portaria do seu prédio com a faca. Sérgio Camargo Kupstaitis passou pelo portão do seu prédio com a faca. Sérgio Camargo Kupstaitis cruzou a calçada com a faca. Sérgio Camargo Kupstaitis não deu meia volta, não se arrependeu, não refletiu, não hesitou. Sérgio Camargo Kupstaitis deu uma facada no pescoço de Everton Henrique. Everton Henrique foi esfaqueado e a polícia chegou ao local e o prendeu. A polícia prendeu Everton Henrique e […]

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