Nathallia Protazio
Nathallia Protazio, escritora
Agora Vai

Ir embora

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Ir embora São Paulo, por Nathallia Protazio

“É engraçado voltar para casa.

Tudo têm a mesma cara, o mesmo cheiro. Nada muda.

Nos damos conta de que quem mudou, fomos nós.” O Curioso Caso de Benjamin Button


Meu pai diz que se alguém pensa em partir, é porque já passou da hora. Ando pensando em partir. E se for chegada a hora de ir embora de Porto Alegre? Talvez eu já devesse ter ido. Podia ter partido no final do primeiro ano, antes da pandemia. Melhor, podia ter ido antes do mestrado, antes de me envolver aqui, antes deste trabalho. Eu poderia ter ido embora várias vezes. Pode ser que meu pai tenha razão e eu estou caindo de madura.

A febre de partir é sintoma do meu sangue Protazio. Meu avô, Zé Protásio – isso mesmo, com acento e ésse – pai de pai, sumia na vida sempre que brigava com vó. Dizem que uma vez saiu da bodega, entregando a chave a meu tio menino e a notícia chegou dias depois. Estava no Paraná. Toda minha família é pernambucana, de Garanhuns. Aquela briga deve ter sido grande para ele chegar até lá. Geralmente Zé Protásio ia só até São Paulo.

Na sua primeira vez em São Paulo meu pai tinha apenas dezesseis anos. Foi ganhar a vida. Quer dizer, hoje posso falar, pois não é mais segredo, como muita gente que saiu do nordeste, ele não estava fugindo da pobreza nem da fome, ele estava fugindo de si mesmo. Meu pai é gay e naquela época a homossexualidade ainda era pecado. Beirava um crime. 1978 foi um ano memorável, foi a explosão definitiva da disco music. Se o mundo dançou ao som de Bee Gees, no Brasil Chico Buarque lançou o icônico álbum Chico Buarque, Gal lançava Água Viva e Bethânia o Álibi, tudo isso enquanto meu pai se achava culpado por ser quem era.

Não me lembro das músicas que tocavam na rádio na primeira vez que cheguei em São Paulo. Eu só tinha três anos. Meu pai estava procurando emprego, então ficamos uns dias, eu e meu irmão, morando na casa da tia Raquel. Agora imagine, ela já tinha quatro filhos, mais nós,  duas crianças pequenas, era uma situação bem complicada. A sabedoria das mulheres mães, tias de periferia em fazer render pão e café com leite é uma demonstração do belo. Como em casa a gente só tomava leite com Nescau, ainda hoje se quero lembrar da casa da tia Raquel é só comer pão com margarina e café, leite e com bastante açúcar.

Ficamos poucos dias com minha tia – essa sensação de morar pouco num lugar se repetiria muitas vezes. Me lembro do semblante sério de minha mãe empacotando panela, dobrando roupa, desfazendo armários. Ir embora não é como viajar. Viajar você faz uma mala com suas melhores calcinhas, um livro que não vai abrir durante duas semanas e dois pares de sapato com a expectativa de, se fizer sol caminhar, se frio, passear de bota. Expectativas pequenas, porque daqui a pouco a tua casa estará de braços abertos para escutar as aventuras e perrengues que foram uma pausa na rotina. 

Ir embora é esvaziar uma casa inteira em caixas, fechar a porta e nunca mais pegar naquelas chaves. Sair para nunca mais aquela rua, aquele cachorro, a padaria, a igreja e em poucas horas, toda uma vida que seria, não será mais. Para sempre perdida. Interrompida. 

Olho para Porto Alegre e me parece querer ir embora,  mas não sei se pra sempre. Não sei se sei querer coisas para sempre. Esse verme dentro de mim me sussurrando ser chegada a hora de partir. Esse verme crescendo nas minhas entranhas, fazendo coçar minha garganta e olhos. Esse verme inquietando pernas e juízo tem fome, bebe minha calma e devora minhas certezas frágeis.

Uma vida de mudanças geográficas, muitas vezes realizadas contra a minha vontade, pode ter me tornado uma viciada em movimento, mudanças, mas não em despedidas. Quando é a hora certa de partir agora que a escolha é só minha? Como ter certeza que ficar ainda é a melhor opção se o sussurro da estrada ecoa até nas esquinas?

Tudo têm a mesma cara, o mesmo cheiro. Nada muda.

Nos damos conta de que quem mudou, fomos nós.” O Curioso Caso de Benjamin Button

Meu pai diz que se alguém pensa em partir, é porque já passou da hora. Ando pensando em partir. E se for chegada a hora de ir embora de Porto Alegre? Talvez eu já devesse ter ido. Podia ter partido no final do primeiro ano, antes da pandemia. Melhor, podia ter ido antes do mestrado, antes de me envolver aqui, antes deste trabalho. Eu poderia ter ido embora várias vezes. Pode ser que meu pai tenha razão e eu estou caindo de madura.

A febre de partir é sintoma do meu sangue Protazio. Meu avô, Zé Protásio – isso mesmo, com acento e ésse – pai de pai, sumia na vida sempre que brigava com vó. Dizem que uma vez saiu da bodega, entregando a chave a meu tio menino e a notícia chegou dias depois. Estava no Paraná. Toda minha família é pernambucana, de Garanhuns. Aquela briga deve ter sido grande para ele chegar até lá. Geralmente Zé Protásio ia só até São Paulo.

Na sua primeira vez em São Paulo meu pai tinha apenas dezesseis anos. Foi ganhar a vida. Quer dizer, hoje posso falar, pois não é mais segredo, como muita gente que saiu do nordeste, ele não estava fugindo da pobreza nem da fome, ele estava fugindo de si mesmo. Meu pai é gay e naquela época a homossexualidade ainda era pecado. Beirava um crime. 1978 foi um ano memorável, foi a explosão definitiva da disco music. Se o mundo dançou ao som de Bee Gees, no Brasil Chico Buarque lançou o icônico álbum Chico Buarque, Gal lançava Água Viva e Bethânia o Álibi, tudo isso enquanto meu pai se achava culpado por ser quem era.

Não me lembro das músicas que tocavam na rádio na primeira vez que cheguei em São Paulo. Eu só tinha três anos. Meu pai estava procurando emprego, então ficamos uns dias, eu e meu irmão, morando na casa da tia Raquel. Agora imagine, ela já tinha quatro filhos, mais nós,  duas crianças pequenas, era uma situação bem complicada. A sabedoria das mulheres mães, tias de periferia em fazer render pão e café com leite é uma demonstração do belo. Como em casa a gente só tomava leite com Nescau, ainda hoje se quero lembrar da casa da tia Raquel é só comer pão com margarina e café, leite e com bastante açúcar.

Ficamos poucos dias com minha tia – essa sensação de morar pouco num lugar se repetiria muitas vezes. Me lembro do semblante sério de minha mãe empacotando panela, dobrando roupa, desfazendo armários. Ir embora não é como viajar. Viajar você faz uma mala com suas melhores calcinhas, um livro que não vai abrir durante duas semanas e dois pares de sapato com a expectativa de, se fizer sol caminhar, se frio, passear de bota. Expectativas pequenas, porque daqui a pouco a tua casa estará de braços abertos para escutar as aventuras e perrengues que foram uma pausa na rotina. 

Ir embora é esvaziar uma casa inteira em caixas, fechar a porta e nunca mais pegar naquelas chaves. Sair para nunca mais aquela rua, aquele cachorro, a padaria, a igreja e em poucas horas, toda uma vida que seria, não será mais. Para sempre perdida. Interrompida. 

Olho para Porto Alegre e me parece querer ir embora,  mas não sei se pra sempre. Não sei se sei querer coisas para sempre. Esse verme dentro de mim me sussurrando ser chegada a hora de partir. Esse verme crescendo nas minhas entranhas, fazendo coçar minha garganta e olhos. Esse verme inquietando pernas e juízo tem fome, bebe minha calma e devora minhas certezas frágeis.

Uma vida de mudanças geográficas, muitas vezes realizadas contra a minha vontade, pode ter me tornado uma viciada em movimento, mudanças, mas não em despedidas. Quando é a hora certa de partir agora que a escolha é só minha? Como ter certeza que ficar ainda é a melhor opção se o sussurro da estrada ecoa até nas esquinas?


Nathallia Protazio é escritora e farmacêutica. Autora de Aqui dentro (Venas Abiertas, 2020) e Pela hora da morte (Jandaíra. 2022). Clique aqui e adquira seu exemplar direto com a autora.

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