Nathallia Protazio
Nathallia Protazio, escritora
Agora Vai

Marcela

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Marcela Arquivo pessoal
Para as gentes de cá, da cidade, contar uma história que não fale de gente não lhes cabe nenhum sentido. Deste lado do rio, os homens e mulheres se multiplicaram e expandiram até não poderem mais. A impressão que dá é que, muito além de filhos e filhas, eles criaram mais braços e pernas do que a espécie preconizava. Hoje ninguém mais tem a capacidade de andar, correm atrás do futuro e constroem mais rápido o presente. Sei o que estão querendo pensar; contudo, não sejamos insensatos e abramos os olhos atentos. Já sabemos que esta história não trata de humanos, então deixemos de lado qualquer tentação murmurada em nossas consciências para críticas a todo momento de quem estaria certo ou errado. Isso não nos convém. Vamos deixar esta tarefa insípida para aqueles mais preparados, ou seja, os que parecem já ter desenvolvido duas línguas e por falta de uso lhes caíram as orelhas. As espécies andam realmente mudadas. Nossa história se passa do outro lado do rio, onde alguns pássaros ainda cantam saudades dos Tapi-guaçus, a erva ainda dorme no sereno, num tempo onde a flora e a fauna resistem. Lá não se veem mais todas as plantas, flores e árvores de atmosferas passadas. Algumas espécies sofreram mutações quase que insignificantes do ponto de vista externo. Tiveram aumento na quantidade de mitocôndrias, membranas celulares mais espessas, desenvolvimento de novas organelas capazes de um tudo pela sobrevivência: estocagem de água, de oxigênio, de nitrogênio. Espera-se que em breve consigam também metabolizar os monóxidos de carbono e derivados de poliuretanos e poliésteres. Porém, aquela que nos interessa hoje é uma espécie que há muito foi observada, catalogada, admirada, dizem alguns que já foi até venerada nas antigas estâncias. O que posso afirmar com bastante clareza é que devido a todas as mudanças internas e externas que sofreu e a sua capacidade de resistência, a espécie consta desde a primeira edição do Vade Mecum Botânico da América Meridional Subtropical. Macela, Marcela, Marcelinha, Camomila nacional, Vassourinha, Carrapicho-de-agulha, muitos são os nomes populares para designar a Achyrocline satureioides. Por força da nossa localização geográfica ficaremos com o termo usado pelos primeiros povos que aqui habitaram e pela poesia sonora melhorada pelo acréscimo do R: Marcela. Quem hoje procura gravuras da espécie vai se deparar com florzinhas de um amarelo palhoso, frágeis, normalmente numa mesma haste várias unidas – talvez se sintam menos pequenas quando juntas. As indicações da medicina popular são infusões, beberagens, emplastros e xaropes. Trata-se assim mal de estômago e desconfortos hepáticos, ela expectora os pulmões e pode acalmar nova dentição em bebês. O povo de cá do rio a domesticou. Atualmente, do lado de cá, ela é um arbusto de no máximo um metro e vinte que passa o ano esperando o fim do verão para dar sentido à sua existência desabrochando pequeninas flores. Essas, com sorte, irão diminuir o choro de algum recém-nascido. Do outro lado do rio Marcela é diferente. Daquele lado ela é árvore. Sim, isso mesmo, eu […]

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