Nathallia Protazio
Nathallia Protazio, escritora
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O nascimento da filosofia

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O nascimento da filosofia Arquivo pessoal

Tenho mania de pensar. Geralmente isso acontece no meio do dia quando alguma atividade rotineira chegou num ponto sutil de leveza pelo tédio. Minha mente entra num limbo de vigília e, assim como quem abre uma porta conhecida que nunca está no mesmo lugar, eu entro na minha despensa de questões em aberto. Não me lembro de fazer um esforço específico para escolher este ou aquele pensamento, tenho a impressão que as reflexões se impõem suas próprias urgências.

A arte tem a capacidade de me abrir portas na mente. Geralmente a música, às vezes observando uma imagem, um movimento, uma oração perfeita, encontro um lugar desconhecido, onde antigos pensamentos me esperavam. É como se eu me ausentasse e tudo dentro de mim aguardasse lapsos de retorno. Como se minha vida se tornasse uma eterna pausa à espera de uma fagulha.

Entenda, estes momentos de pensamento solto, de imaginação viva e encontro com os meus desconhecidos é uma atividade sozinha e solitária, nada se compara a filosofar em conjunto. A filosofia mora na partilha, um verdadeiro ato de amor. Um momento mágico. Tudo começa conversando com alguém, nada impede que seja mais de uma pessoa, mas a experiência me diz que quanto mais elementos, mais ego, muita inibição é criada. O número dois é suficiente, em boa sintonia, o três é ideal, a partir daí a filosofia é facilmente trocada pela masturbação mental e o lugar comum, atividades muito bem praticadas no universo acadêmico.

A filosofia é diferente da reflexão. Na reflexão, eu sozinha mexo e remexo na minha mente, vendo o que tem lá dentro e onde as coisas estão, aprendendo como se comportam e tentando encontrar minhas palavras. A filosofia é coletiva, eu me deixo ser mexida e remexida por alguém. É quando confiamos o suficiente em outra pessoa para que ela veja e tente dar nomes ao que carregamos nos nossos cantos desconhecidos. Enquanto a reflexão nos permite a existência como seres personificados, a filosofia nos acolhe e nos devolve a possibilidade de nos tornarmos sujeitos.

A beleza, tanto de uma como da outra, é a capacidade de construção de vida. Pensar é como gotejar sobre um grão seco de feijão no algodão. Pode ser uma atividade que no início imponha alguns tipos de paciência: falta de silêncio, falta de tempo, falta de espaço com menos luz azul e mais intimidade – nosso neoliberalismo odeia seres pensantes. Mas, com o presente da companhia da calma, a aura da serenidade necessária pode ser criada e a partir daí é só gotejar. Uma gota por vez, o caroço seco se enruga. Alguns dias, o ritmo das gotas e a umidade do ar já são propícias ao tédio. Quando menos se espera a primeira reflexão aconteceu e só é percebida depois do retorno.

Uma fome aumenta. Procura-se um lugar mais escuro, mais úmido e mais íntimo. Todo espaço disponível agora é usado para gotejar o tempo sobre a semente. Uma gota após a outra e a cadência do ritmo se torna rotina, cotidiano e aos poucos as reflexões começam a surgir em qualquer lugar, como segredos envelhecidos redescobertos. A fragilidade com que se entra e se deixa os pensamentos parece uma mágica, louca o bastante para manter-se em silêncio, afinal, quem entenderia?

Com o passar de um tempo que parece adquirido fora dos calendários, antes que fosse possível dar a atenção necessária, a semente se abre e um broto explode em vida. Ali, neste exato momento de milagre, pensar sozinha não é mais possível. A filosofia nasce da necessidade de partilhar nossa vida interior.


Nathallia Protazio é escritora e farmacêutica. Autora de Aqui dentro (Venas Abiertas, 2020) e Pela hora da morte (Jandaíra. 2022). Clique aqui e adquira seu exemplar direto com a autora.

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