Nathallia Protazio
Nathallia Protazio, escritora
Agora Vai

Sessenta e três palavras

Change Size Text
Sessenta e três palavras Arquivo pessoal
Quando da leitura de A arte do romance, de Milan Kundera, encontrei uma paranoia para aquele verão. Fazia calor até no sítio de minha mãe, onde o vento habita dia e noite. Nós fazíamos a leitura dos capítulos vagarosas de dia e discutíamos as manias do autor à noite. Não que Kundera fosse de grande interesse de minha mãe, ou que eu a quisesse doutrinar, era mais uma desculpa para mantermos uma conversação despretensiosa, na qual o mais importante fosse falar. Na minha família não falamos durante boas duas décadas de minha vida, e agora nos esforçamos para construir pontes de palavras. No início usávamos as que tínhamos. Poucas. Felizmente com o tempo começamos a pegar palavras emprestadas, e algumas pessoas mais ousadas, como fui, roubavam algumas de generosos conhecidos. Hoje, com mais experiência, fome e elegância, roubo com consentimento quase que tão naturalmente quanto sorrio. Kundera me entregou um motivo de paranoia, como ia contando, naquele verão ao falar das suas sessenta e três palavras no penúltimo capítulo de seu livro, o sexto, óbvio. Além de ter mania com o número sete, o autor tinha um lance de manias dentro da mania. Não me lembro muito bem o que ele falava sobre as sessenta e três palavras, já faz um tempo danado daquela leitura conjunta, o que ficou foi a lembrança da busca. Passei a imaginar como seria a vida de um personagem que acordasse um dia diferente do que era, no bom estilo Gregor Samsa. Sem ninguém lhe contar ou pedir, o personagem saberia que a partir daquele momento deveria buscar sessenta e três palavras e então… E então o quê? – Perguntou minha mãe. Sei lá, ele morre? Ele… ele, encontra e isso seria suficiente – eu respondi sem saber o que aconteceria depois de encontrar as predeterminadas palavras. Então, pensava eu, se eu fosse escolher sessenta e três palavras, quais seriam? Por que razão uma palavra seria escolhida? Como abriria mão de tantas palavras que não poderiam estar na seleção? O que eu iria sentir escolhendo uma palavra para estar entre as eleitas? Como ter certeza das palavras certas? A loucura me olhava de soslaio sentada no batente do terreiro, de vez em quando dava um cutucão na Paranoia, sentada a seu lado, me apontando e falando alguma blasfêmia que desconheço. Não lhes dei ouvidos. Passei longas horas andando nas brenhas de jurema e aveloz, buscando naqueles caminhos antigos uma maneira, um método de verificação. Longe de mim colocar uma palavra errada em meio às certas. Longas horas. Intermináveis horas de caminhada. A viagem acabou, minha visita teve de ser interrompida em meio àquela exploração léxica. A rotina foi retomada, a casa, os estudos, a vida. Perdi a lembrança desta busca entre um trabalho e outro. O livro, como tantos organismos vivos, deve ter virado palavras emprestadas na casa de algum amigo. Sei lá. A roda viva do cotidiano me levou mais essa obsessão. A questão se acomodou dentro de mim, como tantas outras, aguardando a […]

Quer ter acesso ao conteúdo exclusivo?

Assine o Premium

Você também pode experimentar nossas newsletters por 15 dias!

Experimente grátis as newsletters do Grupo Matinal!

RELACIONADAS

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.