Nathallia Protazio
Nathallia Protazio, escritora
Agora Vai

Tá tudo ótimo

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Tá tudo ótimo Arquivo pessoal

As minhas amigas estão doentes. Minhas colegas de trabalho e minha mãe também. Eu talvez esteja, depende do dia. Em algumas semanas sinto que todas as mulheres que conheço estão doentes. Cisto no ovário, na mama, depressão na TPM ou pós parto, enxaqueca, sinusite, dor nas pernas, nas costas, nos punhos, de estômago. Bem a real, estamos todas fodidas.

Liguei pra minha mãe na quarta-feira de novo e enfim ela me atendeu. Desde domingo tentando, onde ela mora é tão ruim de sinal que eu nem fico preocupada. 

– Oi, mãe, como vão as coisas por aí?

– Ah, este fim de semana eu tomei uma vacina e me acamei. Não sei se foi a vacina mesmo ou se já tava meio ruim com a virada do tempo.

– Que merda, deve ter sido um resfriado, a vacina não dá doença, né.

– Sei lá, minha filha, sei que fiquei ruim. Mas tirando o que não tá bom, tá tudo ótimo. E por aí?

– Olhe, aqui a coisa não tá muito diferente…

E lhe contei como achava que todas as mulheres parecem estar doentes. Falamos mais um pouco de doença, que apesar de não ser um assunto muito leve, é um dos poucos que todo mundo conhece, tece opiniões e já teve alguma experiência. Depois o papo se enveredou pela mudança da temperatura. 

– O frio chega e a gente se acaba, o calor vem e nos derruba. Parece que o pobre foi feito pra sofrer.

Dizia minha mãe, enquanto eu segurava o celular e balançando a cabeça ia respondendo:

– Éééééh.

Daí pra conversa entrar no neoliberalismo, o racismo ambiental, em como o SUS não dá conta da demanda e que o sistema quer mais que o pobre morra mesmo foi dois palito.

– Só não vê quem não quer, o pobre é o produto mais abundante do capitalismo, os ricos precisam que existam pobres. Por que você acha que não tem educação sexual nas escolas? Pros pobre fazer filho. De preferência um monte. E por que não tem educação financeira? An? An?

– Pros pobres continuarem pobres, mãe.

 – Mas é claro!

E continuou sem freio:

– Tudo faz parte de um grande sistema no qual a fabricação de pobres deve ser contínua e profícua, independente se terão saúde, qualidade de vida, alegria, brilho no olhar, sonhos.

Nesta altura da conversa eu já estava mais deprimida do que antes, quando apenas levantava a estatística de saúde pública na minha amostragem de convívio. Há alguns minutos eu só me lamentava a saúde abalada das amigas, agora estava ali, vislumbrando todo um engenho de domínio global calculado pra me ver produzir o máximo possível pra outra pessoa ficar rica e morrer pobre e doente.

– Mãe, eu acho que vou desligar, é que meu horário de almoço tá acabando…

– Tudo bem, minha filha, continuamos depois, queria te contar de um livro que eu tô lendo, mas assim, tá tudo bem por aí, né?

– Olha, mãe, tirando o que tá ruim, tá tudo ótimo.

– Graças a Deus. 


Nathallia Protazio é escritora e farmacêutica. Autora de Aqui dentro (Venas Abiertas, 2020) e Pela hora da morte (Jandaíra. 2022). Clique aqui e adquira seu exemplar direto com a autora.

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