Juremir Machado da Silva

Coach de vida

Change Size Text
Coach de vida Foto: Amy Hirschi/ Unsplash

Leio coisas que me espantam. Isso já não deveria acontecer. Passei da idade dos choques e surpresas. Mas é difícil não estremecer diante da expressão “coach de vida”. Se bem entendi, Eric Saden alerta para o “acompanhamento algorítmico da vida”. Parece que já tem quem não levante da cama sem pedir o aconselhamento do coach e de suas ferramentas. Nos últimos tempos, notei que tudo se tornou perigoso. Caminhar, sem orientação de um profissional, pode ser muito arriscado. Não usar o tênis certo para andar em linha reta, em subidas, em descidas ou em declives pode ter consequências desastrosas.

Outro dia, um texto de jornal perguntava se havia perigo em uma adolescente se maquiar. Outro assunto envolvido em controvérsias é a água. Beber água sem receita médica pode ser grave. Só um especialista pode determinar quanto de água cada pessoa deve ingerir por dia. O leite já foi cancelado. Com tanta gente sofrendo de intolerância à lactose, o leite e os seus derivados estão com os dias contados. Uma taça de vinho por dia até pode ser recomendada de modo mais ou menos generalizado. Agora, água e leite são outros quinhentos pelos efeitos perversos que podem acarretar. Quem diz isso é o algoritmo. Acho.

Um “coach de vida” não é um terapeuta, psicanalista ou algo do gênero. É mais do que isso. O acompanhamento que deve dispensar ao cliente precisa ser integral: como beijar, casar, se separar, vestir, gravar um vídeo, enfim, cada detalhe do cotidiano tem de ser considerado. O coach de vida não tem tempo para cuidar da sua vida, mas assume um compromisso total com a vida do outro. É quase impossível alguém fazer tantas coisas perigosas por dia – escovar os dentes, andar, tomar água, comer, pegar elevador, levar cachorro para passear – sem a ajuda especializada de um orientador de vidas.

Como dizia aquela canção do Belchior, viver é muito perigoso. O perigo maior, contudo, está em coisas durante muito tempo negligenciadas. Por exemplo, fazer a barba. Sem a orientação de um coach, pode resultar em suicídio. Ao longo dos séculos a humanidade foi deixada ao léu. Não confundir com o Léo. Ninguém a acompanhava nas mais arriscadas aventuras do dia a dia, como fazer fogo, pescar, cozinhar. Era cada um por si. Agora, não. Cada gesto é classificado conforme o seu grau de risco. Comer peixe com espinhas sem a presença de um orientador é caso de polícia. Em Manaus, quase me engasguei.

A vida sem um coach tornou-se insustentável. Deitar na grama de um parque sem o acompanhamento de um profissional é perigosíssimo: formigas, mosquitos, cães, carrapatos, quanto elementos agressivos podem ameaçar a pessoa sem noção dos perigos que corre? Entramos numa nova era dos cuidados existenciais. A vida é muito preciosa para ser vivida individualmente. Quer ver uma coisa arriscadíssima? Caminhar de havaianas na praia. Mais complicado do que isso é ficar de pés descalços. Esse é um resquício da pré-história humana. Pode comprometer a sola do pé de modo irrecuperável e constrangedor.

Um amigo pegou bichou de pé.

– Viu, se tivesse um coach isso não acontecia – eu lhe disse.

RELACIONADAS
;

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.