Juremir Machado da Silva

Lévi-Strauss, Coudet e os modos de pensar

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Lévi-Strauss, Coudet e os modos de pensar "gostar de Coudet significa ser jovem, ousado, diferente, moderno" | Foto Ricardo Duarte/Internacional

“Tudo é bom para pensar”. Essa afirmação faz parte das contribuições do antropólogo Claude Lévi-Strauss para a cultura. Ele nasceu na Bélgica. Tornou-se francês. Viveu no Brasil. Participou da primeira fase da Universidade de São Paulo. Estudou culturas indígenas brasileiras. Espantava-se que nossas elites conhecessem as últimas modas intelectuais europeias e desconhecessem os nomes das árvores do entorno. Admirava-se que nos jantares chiques de São Paulo o maior elogio a um prato fosse “bom” ou “muito bom”. Tudo com ele era bom para pensar as sociedades: o cru e o cozido, as relações de parentesco, o mel e as cinzas, as maneiras de comer à mesa, etc.

Hoje, num país como o Brasil, o futebol é bom para pensar. Por meio do futebol podemos enxergar relações, preconceitos, hierarquias, divisões sociais e um monte de coisas mais, até o futebol. Eduardo Coudet é bom para pensar o Brasil. Já falei disso. Volto ao assunto. Coudet estrutura dois quadrantes de organização no RS, o moderno e o antigo. Ou o velho e o novo, o atual e o anacrônico, o bom e o ruim, o futuro e o passado. É assim: gostar de Coudet significa ser jovem, ousado, diferente, moderno, inovador, de olho no futuro. Não gostar quer dizer que a pessoa é velha, ultrapassada, passadista, superada, ranzinza, incapaz de aceitar mudanças. Nem importam os resultados. Fundamental é a atitude. Diante de uma ressalva a Coudet, o jovem moderno reage com ferocidade: “Bom mesmo era o Mano, né?’

Mano Menezes representa agora o passado. Quando saiu do Inter estava passando mesmo. Não é isso, porém, que conta. Coudet e Mano (ou Felipão, Luxemburgo e quase todos os treinadores brasileiros, exceto Fernando Diniz) designam o atraso. Há expressões consagradas para descrever o moderno, que Coudet e os estrangeiros encarnam: eles estudam muito. O verbo estudar nesse contexto assume um tom superior, científico, de uma certeza científica do século XIX, capaz de eliminar o acaso, o imprevisto, a incerteza, o aleatório no futebol. Tostão, que jogou muito e estudou bastante, atrapalha o raciocínio. Ele é leitor de Edgar Morin e acredita na força do acaso e do talento. Recusar estrangeiros por estrangeiros é xenofobia. Valorizar estrangeiros por estrangeiros não seria vira-latice? Perguntar isso já define a pessoa como velha, antiga, anti-Coudet, xenófoba.

Rotulei de neotáticos, por brincadeira, esses adeptos do novo futebol, do futebol científico, no qual o drible é visto como suspeita de apego ao velho e o passe curto é o grande lance. Esse termo obviamente faz de mim um “manista”, que “não entende nada de futebol”, algo que só especialistas com espírito moderno conseguem. Nada tenho contra Coudet. Acho que é bom técnico, no nível de muitos outros, com aproveitamento similar a tantos. Contra o Palmeiras, em São Paulo, ganhou no estilo Mano, encolhido. Nada de errado nisso. Foi assim que Ancelotti despachou o Manchester City, que teve 70% de posse bola, na Liga dos Campeões. E ainda corneteou: “Eles podem levar a bola para a casa. Eu levei o Madrid às semifinais”.

Falar liga dos campões é antigo. Modernos dizem Champions League, assim como dizem último terço para ataque, marcação alta e outras preciosidades da nova língua, o que não deixa de ser algo velho: dar novos nomes para cercar um campo e vender um novo peixe. Coudet estrutura o pensamento no Rio Grande do Sul. Renato Portaluppi equilibra-se na linha lateral: tende para o velho, mas, como tem estátua e bons resultados nos últimos dez anos, resiste à execução. Uma parte dos torcedores gremistas, porém, gostaria de despachá-lo para entrar logo na modernidade. A sua vitória contra o Estudiantes, na Argentina, complicou as coisas. Ele acertou tudo, mudou na hora certa, colocou guris em campos, venceu com um a menos, fez, mais uma vez, história. Um monstro. Tudo é bom para pensar sobre quem somos, como vivemos, como nos classificamos. Em torno de Coudet e dos neotáticos se pode, por exemplo, pensar sobre um novo nome: etarismo.

Tudo se vai definindo por aí, até os programas de nicho na internet. Há programas de neotáticos e de velhos nostálgicos, de modernos e de antigos, de coudetistas, dinizistas e múmias. Estou em acelerado processo de mumificação. Ainda sou uma múmia jovem. Na verdade, tudo isso me diverte muito. É bom para eu me pensar.

Um jovem velho diante do espelho. Ou um velho jovem?

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