Derrotados e triunfantes
Um conto inédito do meu livro em lançamento, Derrotados e triunfantes
Conto único
Apocalipse
Quando acordou, estava diante de Deus…
1
Da natureza dos seres
Vilma raspava latas na solidão do seu lugar. Tinha imensos olhos tristes e uma boca rasgada como uma lagoa. Dela, sem que isso fosse necessário como informação, todos diziam: “É louca”. Falavam assim como quem diz “vai chover” ou “que calor”. Quando lhe perguntavam seu nome, ela respondia preparando a sequência: “Vilmaaaa”. Nome e sobrenome: “Vilma Louca”. Ela raspava latas do amanhecer ao entardecer, jamais à noite, inverno e verão, com chuva ou sol, vento ou calmaria, sempre agachada embaixo do frondoso umbu da esquina ou do cinamomo do fundo do pátio. Raspava latas e rezava. Pedia proteção contra homens maus, bichos ruins, cobreiros, pragas e escorpiões. Um dia, depois de raspar latas por doze horas seguidas, olhou para cima, contemplou o céu, talvez o mais azul da sua vida, e exclamou:
– Ora, vá lamber sabão.
2
Fora dos trilhos
Olhava o trem passar todos os dias. Conhecia os seus horários e até os seus atrasos. Menino, encantava-se com a máquina preta soltando fumaça, rolos que se perdiam no céu cristalino. Adulto, via o sol faiscar na fachada da locomotiva vermelha. Atônito, acompanhava a passagem veloz do Húngaro e do Minuano. Velho, não se lembrava se eram o mesmo. Diziam que trazia muitas mortes nas costas. Não se gabava nem se lamentava. Exibia sempre o mesmo sorriso cândido. Poderia ser um bom contador de história se não fosse lacônico. Vivia para olhar e isso parecia dar-lhe um bom naco de paz. Havia, porém, quem jurasse que cultivava o sonho de ir embora no trem. Um dia, sem que ninguém lhe perguntasse, matou a dúvida que via nos olhos de quase todos:
– De que adiantaria? Eu iria comigo.
3
Paz nos campos
Tinha nome de apóstolo: Mateus. Vivia de modo franciscano. Conversava a cada dia com o padre do vilarejo, que se chamava Gumercindo. Ou se chamara, como ele mesmo dizia, quando paisano. Incorporado, atendia por Clemente. Cultivavam uma amizade de meio século regada a pescarias e jogos de truco por rapadura. Na Semana Santa, entre as missas da manhã e da noite, soltavam pandorgas. Um dia, o lugar recebeu uma visita para entrar na história, se alguém ali fizesse anotações. Um bispo. O homem era magro, elegante e muito sério. Olhou a imensidão dos campos, coração mais profundo do latifúndio, com as suas majestosas mesetas, e declarou solenemente:
– Tudo isso é de Deus. Que grande obra.
Mateus olhou o visitante sem afronta. Disse com serenidade:
– Tomara que um dia seja dos homens.
Clemente balançou a cabeça afirmativamente.
(Derrotados e triunfantes. São Paulo: Almedina, 2023)