Juremir Machado da Silva

Cuca, o estupro e o ar do tempo

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Cuca, o estupro e o ar do tempo Até o ano passado, Cuca treinava o Atlético-MG | Foto: Pedro Souza / Atlético

O treinador de futebol Cuca foi alcançado pelo seu passado. Em 1987, junto com três companheiros do Grêmio – Fernando, Chico e Henrique – ele foi preso na Suíça, durante uma excursão do time gaúcho, acusado de participar do estupro de uma menina de 13 anos de idade. Condenados a revelia, Cuca e seus parceiros nunca cumpriram a pena, que prescreveu em 2004. Jovem repórter do jornal Zero Hora, estive mais de uma vez frente a frente com os quatro jogadores quando eles voltaram ao Rio Grande do Sul. Eu cobria, junto com o grande Carlos Fruet, o dia a dia do Grêmio. Foi montada uma grande operação de libertação e repatriação dos atletas. O tom da interpretação geral era o do machismo dominante na época: do “não deve ter sido assim como a imprensa suíça está dizendo” ao “ela deve ter provocado”. Um pouco mais e os estupradores seriam recebidos como heróis nacionais. Aliás, foi isso que aconteceu. Assim mesmo. Lembro de um entrevistado para quem os jogadores presos seriam “vítimas de um lugar com costumes diferentes do Brasil”.

Durante décadas a imprensa ignorou atos de racismo nos estádios de futebol de todos os tamanhos e de todas as camisetas. A virada aconteceria com o caso do goleiro Aranha. Até aí, tudo era visto como brincadeira ou parte dos costumes. O machismo e a homofobia eram tratados complacentemente. Nunca esquecerei de um episódio com o jogador Cuca. Ele reclamou para mim de dinheiro que não estaria recebendo. Disse que a esposa estava pagando as contas da casa. Foi convencido de que a publicação dessa reclamação fazia dele um gigolô. Ficou furioso. Ameaçou me bater após um treino no Olímpico. Ordenou que eu nunca mais escrevesse o nome dele. À noite, quando eu me preparava por determinação da chefia para ir a uma delegacia registrar uma queixa, Cuca chegou à redação de ZH acompanhado pelo gentilíssimo vice-presidente de futebol do Grêmio Raul Régis de Freitas Lima. Organizada uma reunião com o diretor do jornal, Lauro Schirmer, Régis determinou a Cuca que me pedisse desculpas. Cuca hesitou, resmungou e finalmente cumpriu a ordem. Assumiu também que trataria apenas de jogar dali em diante. Anos depois, encontrei Cuca no Pedrini, em Porto Alegre. O constrangimento ainda era grande.

Ao longo dos anos, Cuca construiu uma sólida carreira de treinador, marcada também pelas suas superstições e religiosidade. Não contava, porém, com uma grande metamorfose da sensibilidade social. Nos últimos tempos, começou a sentir a respiração do passado cada vez mais próxima. Quando assumiu o Corinthians, fiz a previsão óbvia para uma gurizada: “Vai ter de pedir demissão”. Não deu outra. O Brasil mudou. Cuca sempre negou os fatos. A imprensa suíça, no entanto, divulgou que exames detectaram presença de seu sêmen no corpo da vítima. A carreira de Cuca terminou? Há quem diga que depende dele. No mínimo, teria de desculpar-se para continuar. Que desculpas podem realmente apagar o que houve? Os detalhes da condenação estão protegidos por 110 anos de sigilo. A jovem estuprada teria tentado suicídio em algum momento da sua vida. Para ela não houve esquecimento. Um estupro não pode ser visto como uma travessura.

O foco da cobertura da imprensa na época foi a libertação dos jogadores, não o estupro, sempre relativizado. Falhamos todos, especialmente os que tinham direito a opinião. Este é um caso de escola para o entendimento do imaginário de cada tempo. Não me lembro de alguma punição local aos atletas depois de soltos. Foram reintegrados. Seguiram suas carreiras. O zagueiro Henrique jogou por muito tempo no Corinthians.

Cuca foi alcançado por seu passado. Agora ele é aquele para quem o escândalo aconteceu. Aquele por quem o escândalo foi consumado.

Não há prescrição para a memória do abominável.

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