Juremir Machado da Silva

Deu pra bola de 2022

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Deu pra bola de 2022 Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom / ABr

Nunca é bom brincar com o tempo que falta para um dia, uma semana, um mês, um ano terminar. Cronos pode não gostar e se vingar. Os golpistas, “democratas” que pedem penico diante de quartéis, ainda esperam que os milicos entrem em campo e garantam Jair Bolsonaro no poder por mais uma década. Um AVC não olha o calendário antes de acontecer. O acaso nunca para de rondar para desespero de comentaristas de futebol, que praticam o cientificismo dogmático do século XIX por ignorância e orgulho. O que explica o gol que o Brasil tomou lá naquele jogo contra a Croácia na Copa do Mundo do Catar? O acaso. São muitas as fantasias do acaso: distração, empolgação, descuido, erro primário, arrogância.

Estou querendo dar o ano de 2022 por encerrado. Ainda faltam, porém, 11 dias para a convenção ser respeitada. Foi um ano canalha. Convivemos com Jair Bolsonaro tentando comprar a reeleição com farta liberação de dinheiro público, vimos estradas serem bloqueadas por bolsonaristas inconformados com a derrota do capitão nas urnas eletrônicas, que nada fizeram de errado, acompanhamos o surgimento de Jade Picon como protagonista de novela das nove na Globo, o que serviu para melhorar a performance retrospectiva do cigano Igor (os mais velhos se lembram), até então considerado o pior desempenho de um ator em novela global. Precarizados os serviços de táxi, o Uber impõe seus preços nos horários em que mais se precisa. Os moderninhos continuam zombando de quem se queixa. Vira-latas tecnológicos. Aplicativos locais não pegam. Bom é pagar corveia a multinacional, pedindo desculpas pelo termo velho.

Claro que isso nada significa. O importante sempre está em outro lugar. Por exemplo, na determinação do governador Eduardo Leite de privatizar a Corsan e na obsessão do prefeito Sebastião Melo de entregar Porto Alegre para iniciativa privada, inclusive a Redenção, que seria deficitária. Ficamos sabendo, pela primeira vez, que parques devem dar lucro ou se pagar, pois não existe almoço grátis nem de passarinho. O privatismo caga na cabeça dos defensores de manter alguns bens como públicos. Moderno é Estado mínimo, rebatizado de Estado necessário.

Êta aninho danado! A covid continua correndo solta e já pode ser chamada pelo ano em que ceifa vidas. Vamos entrar na covid-23. As máscaras foram para o saco (de lixo). Vida que segue. Só o capital é que não suporta correr riscos e foge do país quando sente que vai perder dinheiro. Gente, em geral, não tem para onde correr. Fica na parada do ônibus. Bem, bate no meu ombro o grilo estrelado: Lula está eleito. Beleza, esperamos que seja rápido na remontagem do país. Por enquanto, sabemos que as forças armadas conquistaram o ministro da Defesa que podiam aceitar e que o centrão vai bem, obrigado, com Arthur Lira a caminho de mais um mandato na presidência da Câmara dos Deputados.

É cedo para ficar alfinetando? Verdade. Nunca, porém, é tarde para mostrar independência. Se um novo tempo está chegando, que não se constranja em compartilhar suas luzes (chega de obscurantismo) e em compartilhar os seus benefícios. O que não falta é gente de pires na mão. Isso se não vendeu o pires para comprar pão, que a inflação nos fez comer a crise que o diabo amassou e jogou em cima de nós. Feliz 2023!

Tambor tribal

Resta esta minha habilidade estranha
Para tentar copiar o intraduzível.
Esta mania de, nas madrugadas frias,
Regurgitar aos poucos o indizível.

Resta esta minha paixão por Vinícius,
Esses extraviados e parcos indícios
De que algo se apagou sem alarde,
Esperança desfeita ao cair da tarde.

Resta essa obsessão pela paródia,
Desvelo, delírio, desdém, mixórdia.
Essa imponência solitária e vaga
Diante da impotência crua e cega.

Resta esse sobressalto, essa inveja branda,
Essa esquisitice feita de coleções e amores,
Essa angústia quando se aproxima o Natal,
Essa certeza de jamais ter sido normal.

Resta essa vontade de abrir o âmago,
Seja lá o que isso for, com as mãos,
As mãos afiadas, porém, em conchas,
Como se dizia na infância, tronchas.

Resta esse esforço cotidiano e duro
Para permanecer inquieto e puro,
Essa força bruta e grave escoiceando
Dentro de mim como um corcel no escuro.

Resta essa melancolia suave
Depois do amor e do sexo,
Essa ponta fina de tristeza
Embevecida de tua eterna beleza.

Resta essa incapacidade de ter aura,
Essa feiura tocante dos homens comuns,
Essa renovada utopia sem motivação,
Esta alma feita de material inoxidável.

Resta essa vontade de sair pela rua,
Como se em cada calçada pisasse na lua,
Descobrindo mundos novos, continentes,
Sorrisos ternos em bocas sem dentes.

Sim, resta essa vontade de mudar tudo
Desde que permanecendo eu, mesmo mudo,
Retirante sem futuro em busca do muro
Onde me encostar para curtir a sombra.

Resta esse sonho de voltar à infância,
De reencontrar lugares quase sagrados,
Um velho atlas de capaz azul, o Sul,
Palavras mágicas como transumância.

Resta essa certeza de que tudo não fui,
Salvo aquilo que do imaginário ainda flui:
Oceano, potro, ventania, chuva, incerteza.

Resta esse desejo de voltar àquela tarde no cinema
Para, enfim, tardiamente, pegar a tua mão úmida
E te dar aquele beijo que guardei em meus lábios,
Essa ilusão de que os muitos anos nos fazem sábios.

Resta a impressão de nunca ter conjugado o verbo haver,
De jamais ter dominado os regulares e irregulares,
De só ter tido olhos para os bizarros e anômalos,
Tão falsamente canhotos como eu aos domingos à noite.

Resta essa sensação de viver sempre sob o açoite
De um desejo violento, impuro e irrefreável,
Desejo de ternura, de cheiro de pêssego, de figos,
De goiaba madura, esse aroma do tempo inefável.

Resta esse passo cada vez mais lento,
Embora eu ainda seja bastante jovem,
Esse olhar atento, esse desalento
Por não ter te buscado na escola.

Resta essa depressão sinuosa e recorrente,
Essa tendência doentia para pintar retratos,
Quadros já pintados por grandes talentos
E esta súbita redescoberta da paixão.

Paixão gratuita e profunda pela vida.
A qualquer preço.

Feliz Natal!

Parêntese da semana

O ano vai se entregando e a revista Parêntese segue mandando bem demais. Nesta edição quase natalina, com a temática “Centenários”, o editor Luís Augusto Fischer avisa: “Não tem brasileiro escolarizado que passe insensível por um ano como este que vai se despedindo. Todo mundo ouviu e leu algo sobre 1822 e 1922. De forma que agora, 2022, andamos com esse zumbido na memória”. Começaremos o próximo ano com o centenário da nossa última guerra civil, a Revolução de 1923.

Frase do Noites

Natal ilumina o iluminista: “A derrota de Jair Bolsonaro antecipou o Natal para outubro. Obrigado, Papai Noel. Já está de bom tamanho”.

Imagens e imaginário

Como, a cada final de ano, eu me vejo, sem autocomplacência:

Escuta essa

As mais belas canções de Natal:

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