Juremir Machado da Silva

Dos 60 aos 80

Change Size Text
Dos 60 aos 80 "Ainda meio perdido na vida porto-alegrense, ouvi Gal cantar um poema que me fez lembrar do que não tinha vivido"| Foto: Silvio Tanaka/Divulgação

Sim, os nossos ídolos ainda são os mesmos e depois deles não apareceu mais ninguém, exceto todos os que novas gerações adoram e que não sabemos quem são. Xuxa chega aos 60. Nunca me encantei com ela. Era adolescente quando ela surgiu na telinha. Os ícones da minha geração já batem nos 80. E depois deles não há mais ninguém para nós que somos velhos. Parece que o tempo musical parou. Vamos sofrer nos próximos tempos, pois não é incomum que pessoas na casa dos 80 anos morram. Todo show de alguém com 80 anos soa como se fosse o último. Paulinho da Viola vem a Porto Alegre festejar sua carreira 8.0. Jorge Ben já chegou aos 84. Roberto Carlos faz parte do clube. Chico Buarque e Caetano Veloso batem na porta. Maria Bethânia está a caminho. A vida passou e minha geração não viu. Espero, contudo, que todos vivam e cantem até os cem anos. Sem eles ficamos sem trilha existencial.

Cheguei em Porto Alegre, em 2 de janeiro de 1980, ouvindo “Geni” nos bares de Navegantes. Eu queria ser jornalista. Um cara me convidou para assaltar um banco e fugir para o Paraná. Não sei o que me assustou mais. O quarto distrito era então só um bairro de operários, com pensões baratas e gente simples pelas ruas. Alguns cantavam depois do almoço à sombra de árvores em calçadas mais frescas. Era comum se trocar fitas cassetes com músicas de arrebatar. Passei um verão, já no Sarandi, ouvindo Chico, Bethânia, Gal e Caetano. Era preciso matar o tempo para que as ilusões não morressem. Ali, naquelas tardes intermináveis, aprendi o que sei sobre metáforas, poesia e utopias. Se não aprendi mais, não foi por falta de mestres e de bons exemplos.

No ano seguinte, ainda meio perdido na vida porto-alegrense, ouvi Gal cantar um poema que me fez lembrar do que não tinha vivido.

Talvez
Quem sabe
Um dia
Por uma alameda
Do zoológico
Ela também chegará
Ela que também
Amava os animais
Entrará sorridente
Assim como está
Na foto sobre a mesa.

Ainda não sei se era a força da interpretação ou a beleza das palavras que me fazia chorar. Eu era muito jovem e sentia uma brutal saudade do futuro. Não havia foto sobre a mesa, mas eu via um rosto numa moldura imaginária. Era o rosto de quem eu apenas adivinhava. Outro trecho me fazia jurar em lágrimas que não voltaria para trás.

Ressuscita-me
Quero acabar de viver
O que me cabe
Minha vida
Para que não mais
Existam amores servis.

Eu ainda não tinha vivido nem morrido e já queria ser ressuscitado para, enfim, viver o que havia sonhado. Do amor sabia quase nada, salvo o que tinha sentido por uma colega, que, meio século depois, me contaria: “A gente gostava dos mais velhos e vocês eram tão meninos”. Era verdade. Talvez por isso eu me comovesse ao ouvir:

Ressuscita-me
Para que ninguém mais
Tenha de sacrificar-se
Por uma casa
Um buraco

Ressuscita-me
Para que a partir de hoje
A partir de hoje
A família se transforme

E o pai
Seja pelo menos
O Universo
E a mãe
Seja no mínimo
A Terra
A Terra
A Terra.

Eu sentia que era uma mensagem para mim. Só não sabia qual. Ainda não sei. A emoção diante dessa canção, porém, ainda é enorme. Eram os rastros do poeta Maiakovski nas mãos de Caetano Veloso.

Foi assim que o tempo passou. Só não fui ao zoológico.

RELACIONADAS

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.