Juremir Machado da Silva

Escravidão, Maria Quitéria e notícias falsas

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Escravidão, Maria Quitéria e notícias falsas Reprodução

Diário de Maria Graham

Criei apenas os títulos para cada tópico que escolhi no diário dessa inglesa, que visitou o Brasil nos primeiros anos da década de 1820. Se o leitor não estiver de acordo, brinque de fazer outros títulos.

Racionalidade econômica

“O resto está ainda coberto com a floresta primitiva. Esta é utilizada como combustível para as fornalhas de açúcar, madeira para maquinaria e, às vezes, para vender. Os proprietários de fazendas preferem contratar ou negros livres, ou negros alugados pelos senhores para os serviços nas florestas, por causa dos numerosos acidentes que ocorrem na derrubada de árvores, especialmente nas posições escarpadas. A morte de um negro da fazenda é uma perda de valor; a de um negro alugado só dá lugar a uma pequena indenização; a perda de um negro livre significa frequentemente até a economia de seus salários, se ele não tiver filho para reclamá-los”.

Visita de um mito, Maria Quitéria

“29 de agosto [de 1823]. Recebi hoje uma visita de D. Maria de Jesus, jovem que se distinguiu ultimamente na guerra do Recôncavo. Sua vestimenta é a de um soldado de um dos batalhões do Imperador, com a adição de um saiote escocês, que ela me disse ter adotado da pintura de um escocês, como um uniforme militar mais feminino. Que diriam a respeito os Gordons e os Mac Donalds? O traje dos velhos celtas, considerado um atrativo feminino?! – Seu pai é um português, chamado Gonçalves de Almeida, e possui uma fazenda no rio do Pex [Peixe}, na paróquia de S. José, no Sertão, cerca de 40 léguas para o interior de Cachoeira. Sua mãe era também portuguesa; contudo as feições da jovem, especialmente os olhos e a testa, apresentam os mais acentuados traços dos índios. Seu pai tem outra filha da mesma mulher, depois de cuja morte ele se casou de novo; a nova mulher e as crianças faziam com que a casa não fosse muito confortável para D. Maria de Jesus. A fazenda do Rio do Peixe é principalmente de criação, mas o proprietário raramente sabe ou conta as suas cabeças. O Senhor Gonçalves, além do gado, planta algum algodão, mas como no sertão passa às vezes um ano sem chover, a produção é incerta. Nos anos de chuva ele pode vender quatrocentas arrobas, por 4 a 5 mil réis; nas estações secas dificilmente pode colher acima de sessenta ou setenta arrobas, que podem alcançar de seis a sete mil réis. Sua fazenda emprega vinte e seis escravos.

As mulheres do interior fiam e tecem para sua casa, como também bordam lindamente. As moças aprendem o uso de armas de fogo, tal como seus irmãos, seja para caçar seja para defenderem-se dos índios brabos.

D. Maria contou-me diversas particularidades relativas a suas próprias aventuras. Parece que, logo no começo da guerra do Recôncavo, percorreram o país em todas as direções emissários do governo para inscrever voluntários; que um desses chegou um dia à casa de seu pai, na hora do jantar: que seu pai o havia convidado a entrar e que depois da refeição ele começou a falar sobre o objetivo de sua visita. Começou ele a descrever a grandeza e as riquezas do Brasil e a felicidade que poderia alcançar com a Independência. Atacou a longa e opressiva tirania de Portugal e a humilhação cm submeter-se a ser governado por um país tão pobre e degradado. Ele falou longa e eloquentemente dos serviços que Dom Pedro prestara ao Brasil, de suas virtudes e nas da imperatriz, de modo que, afinal, disse a moça: “Senti o coração ardendo em meu peito”.

Seu pai, contudo, não partilhava em nada seu entusiasmo. Era velho, e disse que nem poderia juntar-se ao exército, nem tinha um filho para ali enviar; e quanto a dar um escravo para as tropas, que interesse tinha um escravo em bater–se pela independência do Brasil? Ele esperaria com paciência o resultado da guerra e seria um pacífico súdito do vencedor. Dona Maria escapuliu então de casa para a casa de sua irmã, que era casada e morava a pequena distância. Recapitulou o grosso do discurso do visitante e disse que desejaria ser homem para poder juntar-se aos patriotas. “Pelo contrário”, disse a irmã, “se não tivesse marido e filhos, por metade do que você diz, eu me juntaria às tropas do Imperador”. Isto foi bastante. Maria obteve algumas roupas pertencentes ao marido da irmã, e como seu pai estava para ir a Cachoeira a fim de negociar algum algodão, resolveu aproveitar a ocasião e partir atrás dele, bastante perto para ter proteção em caso de acidente na estrada, bastante longe para escapar de ser presa. Afinal, à vista de Cachoeira, parou; e saindo da estrada, vestiu–se à moda masculina e entrou na cidade.

Isto foi sexta-feira. No domingo ela arranjou as coisas tão bem que já havia entrado no Regimento de Anilharia e montado guarda. Ela era muito fraca, porém, para esse serviço e transferiu-se para a infantaria, onde está agora. Foi enviada para aqui, creio eu, com despaches, e para ser apresentada ao Imperador que lhe deu o posto de alferes e a ordem do Cruzeiro, cuja condecoração ele próprio impôs em sua túnica.

Ela é iletrada, mas inteligente. Sua compreensão é rápida e sua percepção aguda. Penso que, com educação, ela poderia ser uma pessoa notável. Não é particular, mente masculina na aparência; seus modos são delicados e alegres. Não contraiu nada de rude ou vulgar na vida do campo e creio que nenhuma imputação se consubstanciou contra sua modéstia. Uma coisa é certa: seu sexo nunca foi sabido até que seu pai requereu a seu oficial comandante que a procurasse. Não há nada de muito peculiar com suas maneiras à mesa, exceto que ela come farinha com ovos ao almoço e peixe ao jantar, em vez de pão, e fuma charuto após cada refeição, mas é muito sóbria.

Fake news

“Vi também que em Lisboa podem publicar notícias falsas, tanto quanto em outros países da Europa. A cidade se iluminou em consequência das notícias de que Lorde Cochrane fora derrotado e a marinha imperial destruída pela esquadra da Bahia”.

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