Juremir Machado da Silva

Logo o Camargo

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Logo o Camargo Foto: Kelly Sikkema/Unsplash

Aos 53 anos, Camargo era um homem atraente, vistoso, em boa forma física, “bem apessoado”, como gostava de dizer a sua irmã mais velha, sempre orgulhosa do caçula. Na repartição, que assim ainda se falava, impunha a sua autoridade sem atropelos, mas com firmeza e alguns nacos de sabedoria. Aos que se gabavam de já ter visto tudo na profissão, filosofava: “A vida dá muitas voltas”. Desconsiderava o riso irônico dos mais cínicos.

Homem de princípios, Camargo era tido como um padrão de ética, mas, como bom brasileiro, não deixava de, vez ou outra, dar uma escapada com uma colega de trabalho. Aventuras bissextas, dizia, comprometidas pela pressão do politicamente correto e dos processos generalizados por assédio sexual. Camargo era sem tirar nem pôr um bem-sucedido homem comum.

Não se espantava com nada, embora soubesse apreciar as mudanças e as permanências. Depois de 28 anos como funcionário, muito observara no comportamento humano. Vira a revolução sexual, a liberação da mulher, a transformação acarretada pela pílula, o impacto da minissaia, o descobrimento do fio-dental, a ascensão dos LGBTQIA+, a conversão de FHC da esquerda para a direita, a queda de ACM e até a efêmera glória de Felipão como treinador do Brasil. Sem contar a chega do PT ao poder e o resto que se sabe, Temer, Moro, etc. Com cinco filhos, achava-se herdeiro de uma tradição superada: a da família grande e feliz.

Numa tarde de verão, Camargo viu aparecer um estagiário reluzente de suor e de juventude sem causa. O garoto trabalharia como motoboy para a instituição, que decidira se tornar mais ágil, dinâmica, inovadora e competitiva. Estranhamente Camargo observou: “O neoliberalismo pode surpreender”. Ninguém notou a súbita condescendência do velho resistente, melhor, resiliente.

Nos meses seguintes, Camargo não parou de observar as chegadas e saídas do doce motoboy. O rapaz tinha suaves olhos verdes e músculos que adoravam se exibir. Paternal, Camargo adotou o menino. Poucos estranharam. Camargo sempre fora assim, generoso, aberto, disponível. Além disso, possuía um sólido capital simbólico capaz de evitar maledicências de primeiro grau. Por algum tempo. Mesmo assim, foi ao psicanalista.

– Liberte o seu eu interno profundo: o desejo é rizomático – disse-lhe o especialista.

Camargo abandonou mulher, filhos e foi morar com o motoboy. Um escândalo. Aos mais chocados, ponderou com a sapiência dos que ousam mudar de rumo: “A vida dá muitas voltas”. Aos mais indignados, ensinou: “Já passou o tempo de se ficar espantado com coisas desse tipo. Não estamos mais nos anos 50”. Tinha razão. Mesmo assim, aquilo ficou pinicando na mente das pessoas e os cochichos tomaram conta do ambiente de trabalho.

– Quem diria, hein? Camargo, logo o Camargo.

– Viu o piercing na barriguinha?

– Não inventa. O Camargo é discreto.

Bem resolvido, Camargo fingia não se importar com os comentários, mas algo o incomodava, justamente aquele “logo o Camargo”. Por que “logo o Camargo?” Era mais homem do que os outros? Tinha mais obrigações do que os outros? Só ele não poderia ter preferências sexuais ao alcance de todos? Ficava louco só de pensar naquele “logo o Camargo”. Perdia o sono ao lado do amado. “Logo o Camargo”. Definitivamente, aquilo era uma grande sacanagem, algo que uma crônica do David Coimbra explicaria. Infelizmente David já não estava deste lado de cá.

Um amigo se mostrou preocupado: “Cuidado, Camargo, o futuro é incerto”. Deu razão ao outro, mas resolveu aproveitar. Caiu na gandaia. Aos poucos, soltou-se. Todo final de tarde, ia para casa de carona com o namorado. Adorava o vento no rosto e o “coleio” da moto entre os carros. Numa tarde muito quente, apareceu de fato com um piercing no umbigo. A direção da casa inquietou-se. Um executivo mais moderno, acalmou os ânimos: “Novos tempos, novos hábitos. A questão é qualidade total”.

O motoboy chutou Camargo. Trocou-o por uma novinha cheia de silicone e tingida até a medula. Era do sexo fluido. Pela primeira vez, Camargo experimentou o desespero. Na luta pelo homem amado, investiu bastante numa metamorfose radical: apareceu de minissaia. Só então conheceu a força do preconceito. Foi aconselhado a tirar férias. O tempo passou, o motoboy ficou para trás. Camargo encontrou o seu destino. Fora disso, contribuiu para o anedotário do lugar. Volta e meia alguém grita no meio da tarde:

– Cuidado para não virar Camargo!

– Olha que o Camargo te pega.

– Camargo, logo o Camargo, hein!

Vida que segue. A burocracia manda. Camargo ainda vai ao psicanalista. Três sessões por semana. Não espera ter alta tão cedo. Tenta compreender aquele maldito “logo o Camargo”.

Sabe que um dia ninguém mais gozará assim.

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