Juremir Machado da Silva

Memória no esquecimento

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Memória no esquecimento

Revejo essa cena estranha com tanto passado: a aranha caiu sobre os lábios dele, que franziu a boca enojado. Parecia que um arame lhe costurava os lábios. Ele se sacudiu. A aranha caiu sobre a sua roupa amarela. Eu o olhei nos olhos firmemente. Vi que o meu olhar o assustava. Eu me vi naqueles olhos ensimesmados. Espichei a mão direita para afastar o bicho do seu ombro esquerdo. Ele se encolheu instintivamente. Vi todo o medo que eu lhe provocava. Recuei. A aranha passeou pelas suas vestes amarelas sem que ele agisse. O que esperava? Por que não tomava uma atitude? O que o impedia de jogá-la longe ou até mesmo de esmagá-la? Finalmente ele se moveu. Com a mão esquerda nua, sem repugnância, apertou a invasora. Ficou uma gosma no seu peito amarelo. Senti nojo.

Fui ao banheiro vomitar.

*

– Morreu o velho dos cavalos, Marcelo.

– Se foi.

– Penou!

– Coitado dele, Fernandes!

– Descansou.

– Tinha alguém com ele?

– Claro que não.

– Apareceu uma mulher para se despedir.

– Filha dele?

– Acho que não.

– Neta?

– Também não.

– Mulher?

– Não sei.

– Quem era, pô?

– Não sei mesmo. Eu a vi de longe. Devia ter sido linda quando jovem. Parece que ela falou umas coisas curiosas junto à cama dele.

– Que coisas curiosas?

– Que ele teria sido escritor e roteirista e que teria passado a vida com a cabeça cheia de histórias até começar a esquecer tudo.

– Se tivesse sido escritor, a gente saberia.

– Parece que nunca quis publicar o que escrevia.

– Tem louco pra tudo!

– Teria escrito dois ou três grandes romances, obras-primas, coisa de gênio, que preferiu manter grandes na sua generosa imaginação.

– Quem ouviu isso?

– A Lia.

– Que coisa! Se tinha mesmo boas histórias para contar, agora elas cairão, como ele, para sempre no esquecimento. Vivia no seu ninho. Raramente saía da cama. Sempre teve horror a cadeira de rodas.

– Mas não levo fé nisso. Se, como diz a neurociência da moda, as pessoas acreditam nas memórias que inventam, ele deve ter inventado as coisas das quais se esqueceu. Quer saber o que eu acho mesmo? Cada um se lembra, quando se lembra, é dos mundos paralelos em que vive.

– Pode ser. Tudo pode ser. Gostei dessa.

– Sabe da manchete?

– Outra?

– A Lia vai ser mãe.

      O sol começava a declinar.

      Havia uma barra lilás na curva do céu.

      O portão estava aberto.

Um menino ruivo entrou correndo no jardim. Gritou:

– Tem uma pandorga indo embora com uma mulher lá no rio.

*Fragmentos do romance Memórias no Esquecimento.

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