Memória no esquecimento
Revejo essa cena estranha com tanto passado: a aranha caiu sobre os lábios dele, que franziu a boca enojado. Parecia que um arame lhe costurava os lábios. Ele se sacudiu. A aranha caiu sobre a sua roupa amarela. Eu o olhei nos olhos firmemente. Vi que o meu olhar o assustava. Eu me vi naqueles olhos ensimesmados. Espichei a mão direita para afastar o bicho do seu ombro esquerdo. Ele se encolheu instintivamente. Vi todo o medo que eu lhe provocava. Recuei. A aranha passeou pelas suas vestes amarelas sem que ele agisse. O que esperava? Por que não tomava uma atitude? O que o impedia de jogá-la longe ou até mesmo de esmagá-la? Finalmente ele se moveu. Com a mão esquerda nua, sem repugnância, apertou a invasora. Ficou uma gosma no seu peito amarelo. Senti nojo.
Fui ao banheiro vomitar.
*
– Morreu o velho dos cavalos, Marcelo.
– Se foi.
– Penou!
– Coitado dele, Fernandes!
– Descansou.
– Tinha alguém com ele?
– Claro que não.
– Apareceu uma mulher para se despedir.
– Filha dele?
– Acho que não.
– Neta?
– Também não.
– Mulher?
– Não sei.
– Quem era, pô?
– Não sei mesmo. Eu a vi de longe. Devia ter sido linda quando jovem. Parece que ela falou umas coisas curiosas junto à cama dele.
– Que coisas curiosas?
– Que ele teria sido escritor e roteirista e que teria passado a vida com a cabeça cheia de histórias até começar a esquecer tudo.
– Se tivesse sido escritor, a gente saberia.
– Parece que nunca quis publicar o que escrevia.
– Tem louco pra tudo!
– Teria escrito dois ou três grandes romances, obras-primas, coisa de gênio, que preferiu manter grandes na sua generosa imaginação.
– Quem ouviu isso?
– A Lia.
– Que coisa! Se tinha mesmo boas histórias para contar, agora elas cairão, como ele, para sempre no esquecimento. Vivia no seu ninho. Raramente saía da cama. Sempre teve horror a cadeira de rodas.
– Mas não levo fé nisso. Se, como diz a neurociência da moda, as pessoas acreditam nas memórias que inventam, ele deve ter inventado as coisas das quais se esqueceu. Quer saber o que eu acho mesmo? Cada um se lembra, quando se lembra, é dos mundos paralelos em que vive.
– Pode ser. Tudo pode ser. Gostei dessa.
– Sabe da manchete?
– Outra?
– A Lia vai ser mãe.
O sol começava a declinar.
Havia uma barra lilás na curva do céu.
O portão estava aberto.
Um menino ruivo entrou correndo no jardim. Gritou:
– Tem uma pandorga indo embora com uma mulher lá no rio.
*Fragmentos do romance Memórias no Esquecimento.