Juremir Machado da Silva

Meu mundo paralelo

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Meu mundo paralelo Foto: Susan Q Yin/Unsplash

Confesso. Vivo cada vez mais num mundo paralelo de sensações e leituras. Passo mais tempo nas páginas de Marcel Proust e Tolstoi do que nos livros atuais da Companhia das Letras e da Todavia, editoras que comandam os encantamentos das pessoas cultas do país. Meu amigo Leandro Minozzo, médico de grande leitura e sensibilidade, me deu de presente um dos melhores títulos de Ian McEwan, “Enclausurado”. Gosto desse escritor, de quem li “Reparação” e “Na praia”. Gosto, mas não me apaixono. Tomo como uma agradável distração. Falta, porém, alguma coisa, algo que tem de sobra em Michel Houellebecq, uma sensação, talvez, de veracidade, de peso existencial, uma espessura cotidiana. Já passei da idade em que procurava convencer os outros da superioridade das minhas escolhas. Hoje, faço como se faz com algo que se come: eu prefiro de longe maracujá a chocolate. Por que mesmo? Não faço a menor ideia.

Outro amigo, Luís Gomes, me avisou para comprar um volume das “Passagens”, de Walter Benjamin, editado pela UFMG. São 1165 páginas. Sou fã de carteirinha de Benjamin. Esse é da minha praia. Quando ele fala em “edificar as grandes construções a partir de elementos mínimos, confeccionados com agudeza e precisão, ou seja, a de descobrir na análise do pequeno momento singular o cristal do acontecimento total”, eu paro e passo uma manhã refletindo. Para mim, esse é o princípio indiciário de que trata Carlo Ginzburg. Ver o todo pela parte, como defende Edgar Morin. Estou citando adoidado. É nesse universo que eu transito. Quero o “cristal do acontecimento total”.

Nunca li Proust inteiro em português. Tenho uma edição francesa em três volumes com letras bem pequenas. Foi nela que li “Em busca de tempo perdido” de cabo a rabo. Agora, velho, releio, sempre no original, na tela do computador, com letras enormes. É muito mais fácil e agradável. As traduções brasileiras que conheço são todas medianas. Perde-se muito das nuanças e matizes. Se toda a filosofia ocidental não passa de notas de rodapé à obra de Platão, toda a literatura posterior a “Em busca do tempo perdido” não passa de nota de rodapé à obra de Marcel Proust. Truques narrativos e explorações psicológicas profundas de todo tipo já estão ali. Há muita gente que só continua escrevendo por não ter lido Proust. Melhor não ler mesmo.

Há muito que divido autores em dois grupos: construtores de mitos e desconstrutores. Só me apaixono pelos do segundo grupo. Seres humanos, em geral, preferem o calor confortável de uma tribo. Permanecer no grupo exige sempre aprovar os seus gestos e rituais. Eu gosto mesmo é de retirar camada por camada dos imaginários para ver o que deles resta ou como se formaram. Dizer o que estou dizendo não significa que não estou aberto a novas sensações ou que não tenho prazer com a atualidade. Nada disso. Quando, porém, volto aos chamados clássicos, sinto vertigens. Não com todos. Nada sinto lendo Virgílio. Fico de pedra, de mármore, com cara de paisagem. Isso não me impede de reconhecer a grandeza histórica de um imenso escritor universal.

A poesia atual não me comove. Sou de Baudelaire, Rimbaud, Eliot e Vallejo. Adoro um pequeno livro de Pablo Neruda, “Vinte poemas de amor e uma canção desesperada”. Gosto de arte de descobrimento, aquela que traz à tona múltiplos sentidos encobertos ao olhar comum. Ou, ao contrário, de uma arte tão enigmática que seja impenetrável. Provavelmente estou errado em tudo. Já é tarde para tentar mudar.

Já achei o cristal do meu pequeno acontecimento total.

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