Juremir Machado da Silva

No tempo dos cronistas

Change Size Text
No tempo dos cronistas

      Era no tempo dos cronistas. Havia muitos. Eu era um deles. A crônica tinha a leveza das coisas passageiras. Por isso, podia ser eterna. Considerada perecível por natureza, quando crônica de fato, podia ser lida na plenitude do seu frescor, sem uma só nota de rodapé explicativa, muito anos depois. Comentários e artigos pereciam, a crônica permanecia. Quanto mais parecia se apequenar para falar das mínimas coisas do cotidiano de algum lugar, mais se tornava universal, grandiosa e permanente. Nesse tempo, agora tão distante, a crônica podia ser irônica, divertida, provocativa ou lírica. Sim, o lirismo era aceito.

      Por lirismo, hoje repudiado como pieguice, entendia-se o gosto por certas imagens, como a de um passarinho na janela, ou pandorgas coloridas coalhando o céu de um azul profundo na Semana Santa. A crônica só não podia ser solene ou pomposa. Talvez por isso tenha sido pouca praticada com êxito por advogados, com a devida vênia aos doutores do estilo bacharelesco. A crônica teve o seu tempo e os seus valores. Cultivou, em geral, a frase curta e as metáforas, prosa poética, poesia da vida de todos os dias, ode ao leiteiro, ao padeiro, às pessoas de boa vontade.

      Depois, a nostalgia que permeava o imaginário do cronista passou a ser chamada de passadismo e chatice. O lirismo foi perseguido como prova de mau gosto. Sobraram alguns cronistas líricos por aí, tão ameaçados de extinção quanto a ararinha azul. O que era motivo de orgulho, estampado no peito do cronista, passou a ser um tanto constrangedor. O cronista, como o poeta, começou a esconder-se em bolhas de tolerância. Uma bela crônica lírica podia ser destruída com uma única sentença inquestionável:

– Textão de tiozinho.

      O cronista brincava com o deslumbramento de sua época com expressões estrangeiras, como fez Machado de Assis na sua famosa crônica pós-abolição da escravatura, de 19 de maio de 1888: “Eu pertenço a uma família de profetas après coup, post-factum, depois do gato morto, ou como melhor nome tenha em holandês”. Isso não fazia dele um xenófobo nem um antimoderno. Acreditava-se que tudo podia ser dito em todas as línguas, inclusive brainstorm, dress code, in, out, on, off e fumus boni iuris, entre outras expressões fashion ou nem tanto, em javanês ou não.

      Nesse tempo em que tudo dava crônica, especialmente o que não dava artigo por excesso de subjetividade e pouca tese com ar de verdade, a vida era decifrada pela arte, que podia ser definida sorrateiramente como a ciência das verdades efêmeras eternizadas. O cronista revelava o oculto rindo do ocultismo. Era pago para capturar o que todo mundo sentia, mas não sabia como dizer. O seu papel era o do observador capaz de se interessar pelas notas de rodapé da história, onde a verdadeira vida se escondia para um café, uma piada ou um momento de descanso das orações, das oratórias e das frases supostamente inteligentes por eruditas.

      Era no tempo dos cronistas. Podia-se escrever um texto apenas para brincar com as palavras ou fazer um elogio póstumo à crônica. Era assim.

RELACIONADAS

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.