Juremir Machado da Silva

Ontem a saudade desceu

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Ontem a saudade desceu

Como um manto, um véu,
Uma nesga clara de céu,
Meu coração era o réu.
Ontem a saudade cresceu,
Como um ácido pranto, meu,
Nosso, suave e áspero, teu.
Até aqui parece pomposo,
Seria talvez mais honroso,
Dar um cavalinho de pau,
Ir plantar lírios no parque,
Fazer algo que ainda marque
O tempo das rosas e dálias,
O rastro de tuas sandálias,
A eternidade do efêmero,
A vida em nossas mãos.
A saudade, porém, era tanta,
Quase um mergulho no rio,
Peixes azuis no telhado,
Tardes nuas no parto,
Esse quarto do grande amor,
Peça por peça até o chão,
Os dias sem calendário,
Perdição intensa e sumário,
Visões do paraíso e do tédio,
O futuro em nossos pés,
Não havia outro remédio.
A saudade era o quadro torto
Um sussurro grave no ar,
A caricatura de um porto,
Asas abertas de par em par,
Um peso compacto e leve,
Um suspiro denso e breve,
A imagem de uma ruela,
O latido do cão amarelo,
Teu sorriso mais belo,
De quando andavas na praia,
Ondulando como a saia,
Vapor barato na cabeça,
A mente, mata espessa,
Expelindo desejos e tramas,
Sapatos vermelhos na cama,
Acordes do primeiro violão,
O apito do trem na passagem,
O cheiro da tarde e da aragem,
O banho de chuva no verão,
A luz glauca da claraboia,
O rastro pesado da Jiboia,
A alegria na hora da boia,
Que assim a gente falava,
Enquanto a vida passava,
Que assim a gente pensava,
Quando o viver era mar,
E o mar era miragem e luz,
E a luz era reflexo da lua,
Azul cobalto no olhar,
Paredes ocres no deserto,
Miragens de Ouarzazate,
O todo, o fim e a parte.
A saudade era o que sinto,
Lonjuras, armas, absinto,
Tudo isso que enche noites,
Mistérios, deuses, açoites,
A imagem e o imaginário,
Tudo, tudo, em composição,
Lenta metamorfose do ser,
Até a outra margem amanhecer.
Era nada, era tudo, era quase,
Mas parecia apenas uma fase,
O tempo de dizer sim ao corpo,
E do corpo nunca dizer não,
Até se acabar na sexta-feira.
Então eu vi como em fotografia,
Aquilo que a memória atrofia:
A parede amarela da estação,
O rugido do vento no temporal,
As pegadas de pássaros no chão,
O grão quase maduro do cereal,
A sombra triste do matagal,
O gosto de pêssego na boca,
O cheiro da goiaba madura,
A doença, a ciência e a cura,
O desejo na hora do sexo,
O coração no segundo do gol,
Os lábios pouco antes do beijo,
Marmelada com riso e queijo,
Os meus olhos nos teus olhos,
O romance ainda não lido,
O amor apenas sendo vivido,
A paixão devorando estradas.
O tempo escorrendo na sarjeta,
Minhas rugas como ampulheta,
O plantão que dizia a bola parou,
O homem que ouvia a vida passou.
E a curva metafísica do rio.
Era eu que bifurcava na vida.
Era eu que marejava ao sol,
Até a noite nos envolver.

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