Juremir Machado da Silva

Pablo Neruda envenenado

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Pablo Neruda envenenado Pablo Neruda em visita à União Soviética em 1950 (Foto: Arquivo Histórico do Ministério de Relações Exteriores do Chile)

Todo mundo sabe: o poeta Pablo Neruda era de esquerda. Comunista de carteirinha. O golpe do general Augusto Pinochet, em 1973, que matou o presidente socialista Salvador Allende, não pretendia deixar qualquer esquerdista vivo. Foi uma tragédia cantada em prova e verso por seus defensores. A Escola de Chicago, estufa de neoliberais como Paulo Guedes, ditou as regras econômicas: liberdade na economia, repressão na política e nos costumes. O par ideal do crescimento acelerado. Neruda morreu pouco depois, em 23 de setembro de 1973, apenas doze dias depois do ataque ao palácio governamental. Uma coincidência perfeita. Agora, especialistas que examinaram seus restos mortais, afirmam que ele foi envenenado. O passado não morre fácil.

Era prática corriqueira na época. A Operação Condor queria eliminar adversários da direita por todos os meios. No Brasil não houve punição a torturadores nem qualquer julgamento dos responsáveis pela ditadura midiático-civil-militar de 1964. Ainda se premiou o campo militar com a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018. Neruda foi um gigantesco poeta. Que me perdoem os especialistas, seu melhor livro é também o mais simples: “Vinte poemas de amor e uma canção desesperada”. “Encontramos a bala que matou Neruda e estava em seu corpo. Quem disparou? Descobriremos em breve, mas não há dúvida de que Neruda foi morto por intervenção direta de terceiros”, disse Alfredo Reyes, sobrinho do poeta, à agência de notícias EFE.

Uma comissão de 16 especialistas atestou categoricamente que Neruda não morreu de câncer. O poeta tem perdido espaço na admiração dos chilenos para Gabriela Mistral, por ter sido machista, tóxico com as mulheres, acusado de estuprar uma empregada em sua casa. O pinochetismo queria limpar a América do Sul da sujeira comunista. Foi o regime dos hipócritas fardados, com o apoio de bajuladores civis. Um combo de interesses escusos e de más intenções moralizadas. O que incomodava em Neruda não era só seu esquerdismo. Era também o seu talento desmoralizante para um regime obscurantista em implantação.

A ditadura chilena matou Pablo Neruda. Não teria, porém, como matar os seus poemas. Augusto Pinochet poderia nascer mil vezes e não contribuiria para a humanidade como fez Neruda com o poema que segue, o décimo dos vinte de amor do seu pequeno livro maior:

Hemos perdido aún este crepúsculo.
Nadie nos vio esta tarde con las manos unidas
mientras la noche azul caía sobre el mundo.
He visto desde mi ventana
la fiesta del poniente en los cerros lejanos.
A veces como una moneda
se encendía un pedazo de sol entre mis manos.
Yo te recordaba con el alma apretada
de esa tristeza que tú me conoces.
Entonces, dónde estabas?
Entre qué genes?
Diciendo qué palabras?
Por qué se me vendrá todo el amor de golpe
cuando me siento triste, y te siento lejana?
Cayó el libro que siempre se toma en el crepúsculo,
y como un perro herido rodó a mis pies mi capa.
Siempre, siempre te alejas en las tardes
hacia donde el crepúsculo corre borrando estatuas.

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