Juremir Machado da Silva

Tráfico de escravos na bolsa de valores

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Tráfico de escravos na bolsa de valores Oitenta e dois trabalhadores foram resgatados de lavouras de arroz em Uruguaiana (Foto: Comunicação Social/PF)

Mais uma denúncia de trabalho análogo à escravidão no Rio Grande do Sul. Em Uruguaiana. Escravizar sempre foi visto como investimento no Brasil, inclusive por quem só queria aplicar em algo parecido com renda fixa. Em meu livro Raízes do conservadorismo brasileiro: a escravidão na imprensa e no imaginário social, escrevi sobre essa aplicação financeira: “O tráfico não foi apenas uma operação sórdida praticada a partir das regiões africanas e nos porões macabros de navios negreiros. Foi também uma oportunidade de investimento seguro na bolsa de valores.

O tráfico de escravos, antes de tudo, foi uma atividade capitalista. Yuval Noah Harari, em Sapiens: uma breve história da humanidade, esclareceu o que para muitas pessoas ainda parece inacreditável: “O comércio de escravos não era controlado por nenhum Estado ou governo. Foi uma iniciativa puramente econômica, organizada e financiada pelo livre mercado de acordo com as leis da oferta e da demanda. As empresas privadas de comércio de escravos vendiam ações nas bolsas de valores de Amsterdã, Londres e Paris. Europeus de classe média à procura de um bom investimento compravam essas ações”. A quem criticasse, podia-se dizer: é a lei do mercado, imbecil.

Oferta e procura. Quando escrevo assim, sou chamado de comunista. Nunca fui. Jamais conseguir ser marxista, apesar de ter lido O Capital inteiro, deitado na grama de uma praça perto do hospital Banco de Olhos, quando morava com meus primos no Jardim Ipiranga. Voltemos à tara pela escravidão. No século XVI, a taxa de retorno dessas ações infames era de 6% ao ano. Um belo negócio para quem não se perdia em dilemas éticos. Poucos eram os que se sentiam abalados por tais práticas cruéis, mas eles existiam. O racismo não foi a causa do tráfico nem da escravidão, mas a consequência disso, uma derivação, segundo Harari: “O capitalismo matou milhões por pura indiferença unida à ganância. O comércio de escravos no Atlântico não derivou de ódio racista para com os africanos. Os indivíduos que compravam as ações, os corretores que as venderam e os administradores das empresas de comércio de escravos raramente pensavam nos africanos. O mesmo pode ser dito dos proprietários de plantações de açúcar: muitos deles viviam longe das plantações e a única informação que exigiam eram livros contábeis com registros precisos de lucros e perdas”.

A “banalidade do mal” nazista foi precedida pela banalidade da ganância capitalista, que inventaria o racismo contra os africanos para legitimar e naturalizar o comércio que ceifou milhões de vida. No ponto de partida, era só um bom negócio com carne humana encontrada fartamente na África. Carne branca, contudo, poderia ter sido encontrada. Mas seria muito mais difícil legitimar seu consumo.

Harari destaca que o mesmo tipo de movimento foi feito pela Companhia das Índias Orientais, levando à fome 10 milhões de bengaleses sem que isso chocasse seus investidores: “As campanhas militares da VOC na Indonésia eram financiadas por burgueses holandeses honestos que amavam seus filhos, faziam doações de caridade e apreciavam boa música e boa arte, mas não tinham consideração alguma pelo sofrimento dos habitantes de Java, Sumatra e Malaca. Inúmeros outros crimes e contravenções acompanharam o crescimento da economia moderna em outras partes do mundo”.

Não deve faltar alguém para dizer que criadores de empregos estão sendo penalizados. O horror dura longo tempo.

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