Juremir Machado da Silva

Machado de Assis, cronista das classes ociosas (2)

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Machado de Assis, cronista das classes ociosas (2) Imagem: Biblioteca Nacional e Reprodução

Leia aqui a Parte 1.

(negros silenciosos ou silenciados?)

A obra (in)completa de Machado de Assis aparece em coleções. Uma delas é da editora Jackson. Os seus textos estão disponíveis na internet. As polêmicas sobre qualidades e defeitos dessas edições não serão analisadas aqui, embora seja sabido que a Jackson cometeu erros de fixação. Tampouco se entrará em detalhes relativos a textos assinados com pseudônimos (Manassés, Job, Dr. Semana, Platão, Victor de Paulo, Malvólio, João das Regras, Eleazar, Lara, Sileno, etc.). Pense o leitor o seguinte: o autor deste livro aqui viu-se desterrado numa ilha tendo como única distração a edição Jackson das obras de Machado de Assis e mais alguns livros e anotações sobre figuras como Joaquim Nabuco e Sílvio Romero. Além de, por milagre, os quatro volumes de Guerra e Paz. Para os fins que norteiam esta proposta bem particular, de análise de conteúdos escolhidos, a ideia permanece sustentável dentro dos seus limites.

Machado de Assis não fala da cor da sua pele, não se refere aos seus pais, não se diz branco nem negro. Seria uma estratégia de sobrevivência? Uma maneira de evitar problemas? Ou apenas uma questão de personalidade? Numa crônica 26 de janeiro de 1896, comentando um assunto do momento, ele escreveu: “Três vezes escrevi o nome do Dr. Abel Parente, três vezes o risquei, tal é a minha aversão às questões pessoais”. O fato de ser mestiço, filho de pardo (“mulato”, conforme o termo da época), neto de escravos alforriados, nascido no Morro do Livramento (21 de junho de 1839), provocaria nele um bloqueio? Em dez romances, dez peças de teatro, 200 contos, mais de 600 crônicas, cinco coletâneas de poemas e cartas, o negro é secundário, silencioso ou, quando fala, mostra-se quase tatibitate, monossilábico. Realismo extremo mesmo em fase romântica?

Não se trata de restrições de fala impostas aos escravizados, mas de conversas entre os próprios negros. Faustino Novais, irmão daquela que seria a esposa de Machado de Assis, dizia, porém, em carta a Camilo Castelo Branco, de 7 de agosto de 1858, que no Brasil: “O homem de letras e o negro escravo não se distinguem falando”. Conceição Evaristo, em entrevista a este autor para o seu canal no YouTube, refere-se à mesma limitação de linguagem em personagens do romance São Bernardo, de Graciliano Ramos, e de Jorge Amado. Ela destaca a infantilização do negro pela extrema redução da sua linguagem.

Retrato cruel do que o autor via? Exposição máxima pelo mínimo. Não há negros heroicos, resistentes, divergentes, vivendo grandes histórias de amor ou de ódio, com direito a subjetividade, pensando sobre a própria condição, nada disso. O que esse silêncio diz ainda hoje?

Pode ser que Machado de Assis tenha, por intuição e necessidade, antecipado o conceito de campo do francês Pierre Bourdieu: “Um campo é um espaço social estruturado, um campo de forças – há dominantes e dominados, há relações constantes, permanentes, de desigualdade, que se exercem no interior desse espaço – que é também um campo de lutas para transformar ou conservar esse campo de forças. Cada um, no interior desse universo, empenha em sua concorrência com os outros a força (relativa) que detém e que define sua posição no campo e, em consequência, suas estratégias”.

Em que campo entrou o pardo Machado de Assis? No da literatura? Mais do que isso: no campo da elite cultural do seu tempo. Talvez isso o tenha obrigado a definir suas estratégias para passar de dominado a dominante andando em diagonal. Quem poderia condená-lo por isso? E se a vingança de Machado de Assis tivesse sido exatamente essa: descrever o silenciamento dos negros pelos brancos enquanto trazia à tona a podridão desses ociosos donos do poder, inclusive dos corpos dos seus escravos.

Lucia Miguel Pereira, em Machado de Assis – estudo crítico e biográfico (1936), faz o homem derivar da obra e a obra dissimular o homem. Dessa forma, o autor falaria muito de si, sempre protegido por seus personagens. Ela tenta combater os estereótipos que se grudaram à biografia do escritor: “O ‘absenteísta’ que nunca se quis preocupar com política, que viu a Abolição e a Republica como quem assiste a espetáculos sem maior interesse” (1936, p. 10). Mesmo apaixonada pela obra do seu biografado, não deixava de fazer observações que hoje podem parecer heréticas: “Lembremo-nos depois dos seus livros – dos seus livros por vezes monótonos, mas de um sabor inconfundível, a principio insosso, depois acre e persistente”. O homem oficial esconderia outro. Em todo caso, “não gostava de ouvir alusões à sua cor”. Ela entrevistou pessoas que conviveram com Machado de Assis, inclusive Sara, a sobrinha de Carolina, que seria a sua herdeira.

Disposta a mostrar esse outro, a autora, na época, podia ser de uma sinceridade desconcertante: “Um espírito banal – e são de uma banalidade desoladora as atitudes mais conhecidas do grande escritor, e até a sua correspondência – não poderia ter criado a Capitu, ou o Brás Cubas”. Para Lucia Miguel Pereira a obra de Machado de Assis “foi uma evasão, permitindo a esse tímido dizer o que não ousava fazer”, o outro lado, não o oposto, complementar ao que podia ser visto.

A hipótese da estudiosa para explicar esse modo de ser de Machado de Assis é problemática por se assentar num psicologismo duvidoso, hoje datado, e em torno de elementos racialistas ou racistas: “Tendo de lutar contra a inferioridade da educação, de sopitar impulsos de nevropata [sic], de desmentir o proverbial espevitamento do mestiço, querendo impor-se aos brancos, aos bem-nascidos, Machado de Assis, num movimento instintivo de defesa, tratou de se esconder dentro de um tipo, não era bem o seu, mas que representava o seu ideal: o do homem frio, indiferente, impassível. Meteu-se na pele dessa personagem, crendo sem duvida que se elevava, na realidade amesquinhando-se, esquecido de que seus livros o traiam – ou o salvavam”.

Segundo ela, que mergulhou na sua vida, “para compreendê-lo, é preciso não esquecer precisamente daquilo que procurou ocultar: da sua origem obscura, da sua mulatice, da sua feiura, da sua doença – do seu drama”. Estaria o olhar de Lucia Miguel Pereira afetado pelos preconceitos do seu tempo? Sim. Na sua apresentação se o personagem prefere “dar-se como nascido em casa modesta porem independente [em São Cristóvão, não no Morro do Livramento], “não seria para esconder a condição servil dos pais, talvez crias do cônego, por ele libertadas, certamente seus empregados?” E mais: “Tantas vezes lançou mão desses subterfúgios para encobrir fatos de que se envergonhava…”


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