Juremir Machado da Silva

Machado de Assis, cronista das classes ociosas (1)

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Machado de Assis, cronista das classes ociosas (1) Imagem: Biblioteca Nacional e Reprodução

A seguir, a apresentação do meu livro sobre o grande escritor brasileiro:

O autor está morto. Vejamos o que diz a sua obra. Com uma condição: sem ajuda de intermediários. Diálogo entre leitor e autor. Metodologia com nome e sobrenome originais: desencobrimento dialógico ou dialógica do descobrimento. Trazer à tona o que o texto guarda diante dos olhos de todo mundo. Machado de Assis criou a modernidade literária brasileira e inventou a pós-modernidade e a hipermodernidade? Quase. Em alguns aspectos, sim. Em outros, faltou pouco. Tudo ele fez ou esboçou antes dos outros. Até hoje ninguém foi tão genial quanto ele em literatura no Brasil. Uma única coisa ele não teria feito: interessar-se profundamente nos seus textos de qualquer ordem – crônicas, romances, poemas, contos, cartas e dramas – pela vida dos negros escravizados que povoavam o mundo no qual ele viveu e escreveu. Só os brancos, especialmente os brancos ricos, seriam realmente protagonistas nas tramas do escritor. Quase nenhuma vida negra teria chamado a sua atenção na sua singularidade a ponto de ser destaque em sua vasta e complexa obra. Há casos, contudo, em que o negro irrompe para logo desaparecer. Em raríssimas histórias um negro ocupa um espaço um pouco mais generoso. Como se explica isso?

Diz-se que gênio é quem vê à frente do seu tempo. Em relação às mulheres e aos escravizados, por exemplo, Machado de Assis não viu, ou não conseguiu ver, muito mais à frente dos seus contemporâneos. Pode ser perdoado pelo contexto? Se viu alguma coisa, no que se refere à escravidão, como mostram algumas poucas manifestações suas, não abraçou a questão de peito aberto, de pena em riste, como fizeram seu amigo abolicionista Joaquim Nabuco e o incansável José do Patrocínio. Até o seu ídolo literário, o escravista José de Alencar, em obras comentadas pelo próprio Machado de Assis, explorou o tema da escravidão com algum sentimento, num padrão de condescendência, o que não fez como político e intelectual. Alencar votou contra a lei do Ventre Livre (1871).

Em carta ao imperador D. Pedro II, José de Alencar dizia: “Toda a lei é justa, útil, moral, quando realiza um melhoramento na sociedade e apresenta uma nova situação, embora imperfeita da humanidade. Neste caso está a escravidão (apud Silva, 2017, p. 57). Mais do que isso, face à luta abolicionista: “A liberdade e a propriedade, essas duas fibras sociais, cairiam desde já em desprezo ante os sonhos do comunismo” (apud Silva, 2017, p. 57). Para Alencar não havia escravidão: “Pode-se afirmar que não temos já a verdadeira escravidão, porém um simples usufruto da liberdade”. Ou, ponderava, “uma locação de serviços contratados implicitamente entre o senhor e o Estado como tutor do incapaz” (apud Silva, 2017, p. 63). Como Machado de Assis lidou com tudo isso nos seus textos complexos e densos, leves e divertidos, originais e inventivos, realistas, irônicos e fortes?

O intrépido e contundente Joaquim Nabuco, em seu genial panfleto O Abolicionismo, de 1883, usava toda a força da sua retórica luminosa para denunciar a escravidão como infame e abominável (2000, p. 15):

Tudo o que significa luta do homem com a natureza, conquista do solo para a habitação e cultura, estradas e edifícios, canaviais e cafezais, a casa do senhor e a senzala dos escravos, igrejas e escolas, alfândegas e correios, telégrafos e caminhos de ferro, academias e hospitais, tudo, absolutamente tudo que existe no país, como resultado do trabalho manual, como emprego de capital, como acumulação de riqueza, não passa de uma doação gratuita da raça que trabalha à que faz trabalhar.

Machado de Assis dizia, com seu melhor tom irônico, não acreditar em “verdades manuscritas”[1]. Este olhar aqui se ampara em algumas das suas “verdades impressas”. Ele foi um homem de Gutenberg: jornais e livros. Viveu para escrever e imprimir as suas visões de mundo. Da mão para a oficina gráfica. Tudo nele se entrelaça com a palavra publicada. Teve opiniões muito firmes sobre literatura, política internacional e arte. Não aliviava para os amigos. Em tempos políticos, especialmente de política externa, expressava convicções robustas e um nacionalismo cristalino e recorrente. Por que não foi combativo em relação à escravidão? A tese central aqui é que Machado de Assis foi o cronista das classes ociosas, revelando seus costumes e satirizando seus modos. Muitos temas serão focados em citações para acentuar o seu perfil e o seu percurso de modo a tentar compreender a sua discrição quanto ao escravismo. Ele era contra a escravidão, mas sem arroubos, sem ativismo, sem paixão, sem manifestos e sem lutas em campo aberto. Por quê? O que o levava a ser tão cauteloso, precavido, quase alheio ao problema?


[1] Este livro tem por fonte os 31 volumes da edição Jackson. Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre: W. M. Jackson INC. Editores, 1957. Mas também alguns textos que não integram essa coleção. Esta primeira citação é do Volume 26, p. 85. Crônica publicada em 31 de julho de 1892.

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