Juremir Machado da Silva

Sal grosso

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Sal grosso Foto: Roven Images/Unsplash

Um mundo sem imaginário seria desértico. O imaginário, entre tantas coisas, é o espaço do mágico no cotidiano. O mágico integra o irreal, o surreal, o onírico, o fantástico, todas essas dimensões que abrigam o sonho, os unicórnios, os centauros, as fantasias, as crenças, crendices, enfim. Sal grosso faz parte dessa imaginação transbordante que atribui sentido ao misterioso, ao enigmático, ao não demonstrado, ao invisível, a relações de outra natureza que não a das causas e efeitos perceptíveis e passiveis de repetição em laboratório. Não creio nos efeitos positivos do sal grosso contra os azares da vida. No entanto, gosto dessa ideia fantástica, mágica.

Nos últimos tempos, porém, minha relação com o sal grosso azedou. Só de ver um cristal de sal grosso sobre a carne já fico enjoado. Vinha notando que enjoava depois de comer uma boa picanha. Aí, dia desses, mastiguei uma pedra de sal grosso sem me dar conta e quase vomitei. Como foi possível ter vivido seis décadas em boa relação com o sal grosso e, de repente, estar de mal com ele, com esse componente de nossas tradições? Comecei a temer desequilíbrios como pressão alta e já falei disso com meus amigos Gilberto Schwartsmann e Leandro Minozzo. Vou medir a pressão no próximo encontro casual com o sal grosso. Se falo dele aqui, contudo, não é por razões propriamente médicas ou de saúde. É por razões imaginárias mesmo.

Pesquisadores sabem de onde vem essa ideia de que o sal grosso protege contra infortúnios. Eu invento novas hipóteses. Será que minha atual aversão ao sal grosso prenuncia uma metamorfose na minha vida? Deixarei de ser carnívoro? Virarei vegano? Estou vivendo uma mutação ainda estranha à minha consciência?  Sal grosso, simpatias e rituais costumam se dar bem. Não concebo um mundo sem rituais. Eles ajudam a quebrar rotinas. Ou a fazer das repetições atos de renovação de alguma coisa. Por exemplo, da fé na vida. Meu amigo Michel Houellebecq não pode ser chamado de religioso. Apesar disso, seus livros costumam mostrar que onde ritual e fé desaparecem, cresce a anomia. A sociedade tira o seu “cimento social” de pequenos ritos.

Entre mim e o sal grosso, porém, não há mais entendimento possível. Só de pensar, estremeço. Um amigo acha que se trata de mais uma reação de meu inconsciente à ideologia do gauchismo. Discordo. Não sou contra os rituais do tradicionalismo gauchesco. Sou avesso a dogmas e a reacionarismo. Seria o sal grosso o símbolo de algo que meu espírito quer rejeitar? Meu espírito sempre foi muito rebelde, quase nunca me obedece, tem ideias próprias, costuma me contrariar em público, só faz o que lhe dá na cabeça, nunca me diz o que tem em mente, se duvidar me desautoriza na hora em que mais preciso dele e de sua discrição? Não é confiável. Já pensei em lhe cobrir de sal grosso. Ainda bem que desisti dessa ideia. Melhor mesmo é medir a pressão. Estou na idade em que até água precisa ser consumida na medida certa. Passei de dois litros por dia para um litro e meio. Andava tonto.

Tambor tribal (Estive em Palomas e repito)

Milonga palomense
Se a vida me faz um afago,
Prometo voltar ao pago,
Molhar as mãos na lagoa,
Soltar pandorga que avoa.

Ainda volto pra querência,
Trago no peito a ciência,
Das velhas lides campeiras,
Arroio cheio nas cabeceiras.

Na solidão destas cidades,
Canto milongas de Palomas,
Conto sempre as mesmas bromas,
Cultivo lavouras de saudades.

Sonho com potro caborteiro,
Me vejo como bagual faceiro,
Curo minhas mágoas com trago,
Goles serenos de um amargo.

Nas madrugadas corro carreiras
Nos olhos de prendas brejeiras,
Passa de pêssego, acha de lenha,
Sempre pronto para o que venha.

Experimento o vento no rosto,
Quero estar no meu posto
Quando soar o derradeiro clarim
Na manhã com cheiro de alecrim.

Festejo cada fim de agosto,
Esgualepado em lombo de ano,
Não conheço maior desgosto
Que o silêncio do minuano.

Nas sombras da memória,
Há sempre uma história,
Cemitério da cruz,
Coice de avestruz,
Um repentino facho de luz.

O tempo é tudo que trago,
Me contempla como um guacho,
Tento sofrear seu estrago
Raspar marmelada no tacho.

Sei da vida os intervalos,
No escuro a vista se faz pura,
Se a infância nunca dura,
Resta o tropel dos cavalos.

Parêntese da semana

“Parêntese #205: Para aliviar o calor”. Tem como? Luísa Kiefer responde: “Para contrastar com o agito do final de ano, cheio de encontros, festas e happy hours, trazemos conteúdos para dar uma parada no tempo. Aquele respiro, aquela pausa. Quem sabe uma leitura na sombra para aliviar o calor intenso destes dias? Na edição de hoje, Luís Augusto Fischer mergulha em uma investigação sobre as diferenças entre a música popular brasileira e a dos Estados Unidos. Seguindo uma lembrança meio vaga, o professor vai atrás de fontes sobre a proibição de os negros tocarem tambores lá nas terras estadunidenses. Plínio Melgaré celebra os 75 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, mas não deixa de indagar: será que a igualdade entre todos é uma utopia?”

Frase do Noites

“Não existe fim de ano. O que existe é gente passando.”

Imagens e imaginários

No Pensando Bem, que vai ao ar todo sábado na FM Cultura, 107,7, numa parceria da Cubo Play, Matinal e revista Parêntese, com apoio da Adufrgs, Nando Gross e eu conversamos com o músico Antonio Villeroy sobre sua carreira, a vida em Portugal, onde está morando com a família, as parcerias, os sucessos, as trilhas de novelas e muito mais.

Escuta essa

Luz acesa, show do cantor e compositor gaúcho Antonio Villeroy.

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