Juremir Machado da Silva

O mundo de Nadia Murad, Nobel da Paz, visto pela lente e pela pena de Márcio Pimenta

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O mundo de Nadia Murad, Nobel da Paz, visto pela lente e pela pena de Márcio Pimenta As mulheres saem do templo. A partir deste momento elas se sentem renascidas e voltam a ter esperança de encontrar um futuro tranquilo. Lalish, Curdistão, 2017

Explorador e fotógrafo, membro da National Geographic Explorer e do The Explorers Club, Márcio Pimenta esteve no Curdistão na cobertura da guerra do Iraque contra o Estado Islâmico em 2016 e 2017. Ele é autor do fotolivro Yazidis. No texto que segue, feito por ocasião da vinda de Nadia Murad a Porto Alegre, o fotógrafo mostra com sua lente e descreve com suas palavras sentidas um mundo que interpela brutalmente a humanidade.

É possível sair das sombras do próprio destino?

Uma mulher caminha com seu filho nas ruas de Al Qayyarah, Iraque 2016

É possível sair das sombras do próprio destino? Era a pergunta que me fazia enquanto escutava uma mulher me contar como ela e um grupo de outras yazidis promoveram a fuga. Sob um calor de mais de 35 graus aguardaram anoitecer e então escaparam. Pedras, poeira e escassos arbustos eram tudo que formavam a paisagem. Mas o ritmo que imprimiram na fuga era inalcançável para as possibilidades físicas de Hure Kaso Murad, de 66 anos, e ela acabou ficando para trás. Sozinha, continuou caminhando por um dia e meio até encontrar uma família xiita. Eles a abrigaram e, quando tudo estava mais seguro, ajudaram-na chegar até a região dos curdos.

O Curdistão, que abriga os yazidis, faz fronteira com quatro países – Turquia, Iraque, Irã e Síria. Em três desses países a população yazidi diminuiu muito devido a campanhas de conversão forçada, lideradas por governantes islâmicos radicais. Mais notadamente, no Império Otomano, que lançou numerosas campanhas de genocídio sistêmico. Somente na Turquia, mais de 350 aldeias yazidis foram varridas do mapa ao longo de quatro séculos.

Hoje o Iraque ainda é a base principal dos yazidis, com uma população estimada em meio milhão. Cerca de outros 500 mil residem em nações ocidentais da Europa e da América do Norte, além da Rússia e Austrália.

“Haviam muitos corpos. Eles mataram muitas pessoas lá. Os cães comiam os corpos, as mãos, a cabeça”, me contou Hure a respeito dos anos em que viveu como prisioneira do Estado Islâmico, enquanto me oferecia um chá preto sentada no chão com amigos no templo sagrado de Lalish, norte do Iraque. Ela exibia o bom humor e a confiança de quem volta para a segurança de um lar. Hure, assim como outras mulheres yazidis, estava renascendo.

Ao ouvir os relatos dessas mulheres corajosas, somos confrontados com a brutalidade que enfrentaram. Os horrores presenciados, os entes queridos perdidos e a terrível crueldade infligida sobre elas deixaram marcas indeléveis em suas almas. No entanto, mesmo diante de tanta dor e sofrimento, essas mulheres encontraram forças para se reerguer. Elas buscaram refúgio junto à comunidade, encontrando apoio e solidariedade. Juntas, elas compartilharam suas histórias, nutrindo a esperança de que o mundo ouvisse e compreendesse a extensão de suas provações. Infelizmente, a exposição inicial teve um custo altíssimo – o sofrimento inimaginável nas mãos de militantes do chamado Estado Islâmico, o ISIS.

“A vida era muito diferente do que é agora”, descreve Turkia Hussein. “Tínhamos uma vida muito simples e os campos verdes do Monte Sinjar. Meu marido era um soldado peshmerga e isso era o suficiente para termos uma vida confortável e em paz. Isso até 03 de agosto de 2014”. Ela relata a madrugada daquele dia quando os militantes do Estado Islâmico realizaram o ataque. Daquele dia em diante tudo mudaria para os yazidis.

“Eles falaram que não iriam machucar ninguém”. Mas a verdade era bem diferente. Na frente de muitas mulheres, quase metade dos homens yazidis foram executados a tiros, decapitados ou queimados vivos, enquanto os demais morreram de fome, desidratação ou ferimentos. Os que sobreviveram foram obrigados a lutar ao lado dos militantes. As mulheres mais novas seriam usadas como escravas sexuais e as mais velhas ajudariam com serviços de casa. Turkia tentou fugir com a família: todos entraram num carro e aceleraram pela estrada que os levaria ao Curdistão iraquiano. Mas no caminho foram interceptados pelo ISIS. Separada da família, Turkia foi levada para a Síria, onde foi forçada a decorar o Alcorão antes de ser levada de volta para o Iraque, onde viria se tornar escrava sexual. Um pesadelo que durou dois anos – período em que foi vendida 13 vezes.

A história destas mulheres é importante para tantas outras que vivem sob um contexto de conflito se reconheçam e encontrem nelas exemplos de resiliência. A coragem está em cada mulher, em cada yazidi, em Nadia Murad, ganhadora do Prêmio Nobel da Paz, em Lamia Haji, vencedora do Prêmio Sakharov, e em Farida Abbas, autora do livro The Girls Who Beat ISIS (As garotas que venceram o Estado Islâmico, em tradução livre) que foi publicado em 14 países – ainda não publicado no Brasil. Mesmo após serem submetidas a violações físicas e psicológicas profundas, elas encontraram força para se reerguer.

O ISIS não as silenciou, as tornou mais unidas e mais fortes. Essas mulheres yazidis nos ensinam que, mesmo quando enfrentamos a escuridão mais profunda, podemos encontrar a luz da esperança e da superação. Elas nos mostram que não importa quão adversas sejam as circunstâncias, podemos emergir mais fortes do que nunca.

Que a coragem dessas mulheres inspire cada um de nós a refletir sobre nossas próprias vidas e a valorizar a liberdade e a segurança que muitas vezes damos como garantidas. Ao testemunhar a coragem e a resiliência dessas mulheres yazidis, somos lembrados de que a vida é uma jornada repleta de desafios. Suas histórias nos inspiram a olhar para dentro de nós mesmos e enfrentar nossos próprios obstáculos, por mais assustadores que possam parecer.

Essas mulheres não apenas sobreviveram a experiências terríveis, mas também encontraram forças para se reerguer, reconstruir suas vidas e buscar a justiça. Elas nos mostram que, independentemente das circunstâncias, sempre há esperança e uma luz que pode nos guiar através da escuridão.

Ao ouvir suas histórias, somos chamados a valorizar a liberdade e a segurança que muitas vezes damos como garantidas. Elas nos lembram que a paz e a estabilidade são conquistas frágeis e que devemos trabalhar incansavelmente para preservá-las.

Essas mulheres nos convidam a refletir sobre nossas próprias vidas e a apreciar as bênçãos que temos ao nosso redor. Elas nos encorajam a abraçar a resiliência humana e acreditar em nossa própria capacidade de superação. Por mais difíceis que sejam nossos desafios, podemos encontrar força dentro de nós mesmos para enfrentá-los.

Que as histórias dessas mulheres yazidis nos inspirem a ser agentes de mudança em um mundo que muitas vezes é dominado pelo ódio e pela violência. Que busquemos um mundo onde a compreensão, a tolerância e o respeito sejam os pilares de nossas interações.

Que suas histórias de resiliência inspirem a todos nós a enfrentar nossos próprios desafios, acreditando em nossa capacidade de superação e encontrando a coragem necessária para sair das sombras do nosso próprio destino.

Uma ponte destruída pelos bombardeiros contra o Estado Islâmico. Al Qayyarah, Iraque 2016

Esta é uma oficina e uma loja. Eles trabalham tanto com armas reais quanto com armas de brinquedo. Erbil, Iraque 2016

Um Humvee do exército iraquiano retorna à base após uma batalha perto de Al Qayyarah, perto de Mosul, Iraque 2016

Em uma das bases das Forças de Operações Especiais do Iraque, comumente conhecida como Divisão Dourada, em Moakamur 2016

As mulheres yazidi que encontraram sua liberdade retornam ao templo de Lalish, onde está localizada a tumba do xeque Adi ibne Muçafir. Ele era um místico Sufi que viveu no século 12 e é considerado uma figura central no Yazidismo. Lalish, Iraque 2017

Hure Shamo (esquerda) e Hure Kaso Murad (centro) fazem uma oração em voz alta enquanto desejam dias melhores para o povo Yazidi. Lalish, Curdistão, 2017

Na fonte sagrada “Zamzam”, Turkia Hussein (centro) acompanhada de seus filhos, grata por se tornar uma Yazidi novamente. Lalish, Curdistão, 2017

S. K., 23 anos, Yazidi. Lalish, Curdistão, 2017
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