Operação limpeza no Centro Histórico
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Depois da comporta derrubada, voltamos ao centro de Porto Alegre para conferir os estragos da grande enchente e ver o recuo das águas. Fomos com certa leveza, empurrados pelas reportagens de televisão feitas em lugares secos da região central. As imagens que logo vimos dizem mais do que qualquer estupefação: o Mercado Público e a Prefeitura Municipal continuam cercados pelas águas e exigindo bote para serem alcançados ou bota de borracha de cano alto e coragem para arriscar a travessia. Dois homens preparavam-se para embarcar num bote inflável. Trabalham no Mai, um servidor de internet sediado na Siqueira Campos. Informam que na Siqueira a água ainda dá no peito:
– Para chegar lá, só assim – diz um deles.
– Estamos levando combustível para o gerador – diz o outro.
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Nas partes em que a água de fato retrocedeu, a operação limpeza reúne pequenos exércitos da faxina, que precisam enfrentar a falta de eletricidade. Na rua Uruguai, entre a Andradas e a Sete de Setembro, duas Ana Paula encaram a situação.
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A primeiro tem escritório num edifício do qual todos os moradores saíram. Ela espreita a entrada:
– Não vou entrar sozinha aí, sem luz, de jeito nenhum.
A porta está aberta. Cautelosa, ela prefere esperar a chegada de algum vizinho. No outro lado da estreita rua, Ana Paula, proprietária do Café à Brasileira, acompanhada de funcionários armados de rodos, vassouras e produtos de limpeza, espera que um amigo abra a cortina metálica, operação lenta e exaustiva. Ana Paula pede a cada pessoa que esteja de luva e que não toque em nada de mãos nuas na hora de entrar.
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Um caminhão de desentupimento chega para operar num buraco cheio d’água, de boca aberta para o céu, como se estivesse prestes a vomitar. Em cada porta de loja, lama, água suja e gente determinada a vencer os restos e rastros deixados pela inundação. A Rua da Praia parece um leito de rio assoreado depois que a água se perdeu. Homens com sacos de lixo surgem de todos os lados. Por exemplo, na Caldas Júnior, em frente ao prédio histórico do Correio do Povo.
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O chão da Praça da Alfândega parece uma pista suja de patinação: um convite para um tombo. Desliza a cada passo. A partir da alameda central da praça, aquela que é o coração da Feira do Livro, a água ainda impera. Uma árvore tombada faz pensar em literatura, mas é só uma vaga alusão da cabeça de quem vive nos livros. O clima ainda é de desolação. A alegria dos encontros entre leitores e autores parece uma ficção que se perdeu no tempo, um tempo em que sol e chuva disputavam cada página sem impedir que a continuidade da festa e gozo de todos.
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O velho Mercado Público, inaugurado no século XIX, viu de tudo na sua longa história, da escravidão à enchente de 1941, de incêndio a inundação, de crenças afro-brasileiras a políticos engravatados tomando uma cachacinha em final de tarde, do bom ao mau tempo. No seu segundo andar, mesas com toalhas brancas esperam clientes que custarão a voltar. No térreo a enchente apagou as cores e instalou o pesadelo.
O centro de Porto Alegre está muito longe das crônicas poéticas sobre as sereias que usam saias. Enquanto as águas não voltam para o Guaíba, as ruas exalam mau cheiro e a paisagem se mostra como escombros.
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Uma senhora de cabelos brancos pergunta a um rapaz:
– Se o rio subir de novo e transbordar – que Deus não permita uma coisa dessas – como vão fechar a comporta que derrubaram?
O barulho de um caminhão encobre a resposta.
Tambor tribal (Guerra de narrativas)
O termo narrativa tornou-se moda no Brasil dos anos de ascensão do bolsonarismo. É usado pela direita e pela esquerda com a mesma desenvoltura conceitual. Tudo é narrativa. Parece significar apenas isto: a verdade (versão) que cada um tenta emplacar contra fatos, evidências ou provas. O Rio Grande do Sul está vivendo uma guerra de narrativas entre especialistas que garantem ter faltado manutenção aos equipamentos de proteção contra cheias em Porto Alegre e gestores que classificam essa hipótese de pueril e garantem que só não foi pior por causa do funcionamento desses dispositivos, ainda que limitados pela violência inesperada das águas. Até agora só uma parte apresentou dados convincentes. A construção narrativa corre por conta das autoridades da capital. Narrativa é palavra que pode ser traduzida como mitologias, a qual, por sua vez, não passa de ficção realizada.
Parêntese da semana
“Parêntese #226: Como assim?” Com a palavra, Luís Augusto Fischer: “Amigos de fora do Rio Grande amado me abordaram, nesses custosos dias, com uma pergunta que girava em torno de um mistério. Me apresso a dizer que é mistério para eles e igualmente para nós. Um deles vocalizou assim a perplexidade: como foi que um Estado culto, educado, politizado, foi dar nisso – ter dirigentes tão…, tão assim como são? Ele se referia ao prefeito Melo (“Fiquei de cara, Melo!”, conforme o tracadilho do Demétrio Xavier ilustrado pelo Santiago, em torno do cavalo tostado batizado de Caramelo) e ao governador Leite (aquele que foi capaz de sugerir que era melhor diminuir as doações para não prejudicar o comércio local – enormidade da qual ele se retratou uns dias depois, é bem verdade)”. Resposta neste link.
Frase do Noites
O iluminista tenta crer no futuro da humanidade: “Quando o gestor chama de fatalidade as perdas das pessoas que a sua ação previdente deveria ter protegido, tem-se uma catástrofe natural: a perda da capacidade de um ser humano de admitir os seus erros”.
Imagens e imaginários
No Pensando Bem, que vai ar todo sábado, 9 horas, na FM Cultura, 107,7, em parceria com a Matinal, a revista Parêntese e a Cubo Play, e apoio da Adufrgs Sindical, Nando Gross e eu entrevistamos Rosângela Florczak (PUCRS) e Luiz Arthur Ferraretto (UFRGS). Uma conversa franca e instigante sobre gestão de crise, cobertura jornalística, o retorno do rádio e fake news durante a tragédia que abala o Rio Grande do Sul.
Escuta essa
Enquanto olhava para o fio da enchente, em São Geraldo, passados 14 dias longe de casa, uma senhora cantarolou para mim: “Vai passar”.
Vai, Chico Buarque.
Vai passar, sim, mas a dor ficará por muito tempo.