Para lembrar Borges

Juan Dahlmann, o bibliotecário borgiano que embarca, em Buenos Aires, para o Sul é um homem desnorteado. Viagem sem retorno, marcada pela saudade, mais literária do que real, rumo ao passado, ao encontro da morte. Viagem de um louco. O Sul, na obra do argentino, é uma categoria temporal, melhor dito, intemporal: a eternidade numa bússola teimosa. Borges considerou, num prólogo a Artificios, “El Sur” como possivelmente o seu melhor conto. Com certeza, resume o imaginário do autor na plenitude da criação. 

       Se “nadie ignora que el Sur empieza del otro lado de Rivadavia”, tampouco ninguém mais ignora que, depois de Borges, Sul começa com “B”. Ou, ao contrário, Borges sempre começou com “S”: de soledad, senderos, secretos, sueños, simulacros, Sarmiento, Sombras… Sur. Já em Fervor de Buenos Aires, seu primeiro livro (1923), Borges cantava o Sul como essência do poema. Em Cuaderno San Martin (1929), já aparecem as ruas do sul associadas à morte, logo ao tempo; por consequência, à memória. Sul da América, mas antes de tudo da era gaucha.

       Sul de gaúchos, de lembranças, de um estilo de vida fadado à recordação por já viver do esquecimento. Escritor do sul, Jorge Luis Borges encontrou nas sombras atalhos para segredos e sonhos escondidos desde logo ali, nos subúrbios de Buenos Aires. Mas toda a literatura de Borges se bifurca na passagem para o sul. Mesmo tendo bebido incessantemente nas mitologias gregas e escandinava, ele percebeu, na mitificação do pampa o ponto cardeal situado do lado esquerdo da pena, “que gauchos [homens] de esos ya no quedan mas que en el Sur”.

       Se o Sul levou Dahlmann ao duelo libertador, longe do sanatório, na busca da estância do avô materno, arrastou Borges para a glória sem fim. O escritor universal e erudito, como pouquíssimos gênios, soube transformar o tempo local numa mitologia. Foi nesse sul mítico que viu a poesia sangrar.

Fim de ano é sempre de voltar ao sul. Ao Sul.