Juremir Machado da Silva

Para onde vai o humano?

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Para onde vai o humano? Foto: Possessed Photography/Unsplash

O ser humano está em baixa. Paga pelos pecados dos seus antepassados e pela ganância presente. Sofre a crítica pomposa embutida no rótulo antropoceno. Aposta na inteligência artificial para superar suas falhas naturais e contínuas. Talvez a mais perfeita e sintética crítica ao capitalismo espetacular, no qual se pode incluir o capitalismo de aplicativos, seja a de Guy Debord na sua tese 12: “O espetáculo se apresenta como uma enorme positividade, indiscutível e inacessível. Não diz nada além de: o que é bom aparece, o que aparece é bom. A atitude que ele exige por princípio é essa aceitação passiva que já conquistou por sua maneira de aparecer sem réplica, pelo seu monopólio da aparência”.

A inteligência artificial vai destruir milhões de empregos. Esse fato deve ser encarado positivamente, sem discussão, sem réplica, pois se a inteligência artificial apareceu é por ser boa. Toda crítica se apresenta como ressentimento e incompreensão. Os apaixonados pela novidade e ainda mais pelo novo tecnológico interditam qualquer debate como sintoma de incapacidade etária de recepção. A substituição do humano avança supostamente em benefício do próprio homem. Nos Estados Unidos, Uber já testa carros sem motoristas em várias cidades. Os argumentos “indiscutíveis” são a segurança e o menor preço. O golpe do menor preço é o que mais costuma funcionar. Uber já o pratica desde o começo como dumping legitimado. Pelo interesse do cliente, que se comporta como se não fosse também trabalhador.

Gary Marcus, professor da Universidade de Nova York, é um dos que têm colocado o pescoço a prêmio, correndo o risco de ser guilhotinado pela navalha do GPT. Segundo ele, “algo inacreditável está acontecendo na inteligência artificial neste momento — e não é inteiramente para o bem”. A ideia de que as máquinas se tornarão sencientes e assumirão o controle parece ainda pura ficção científica. O mais provável é que simplesmente elas tornem o ser humano inútil, fazendo tudo o que eles costumam fazer até agora. O ser humano sentirá saudades do seu jugo? Durante os séculos do cativeiro negro, os escravistas alegavam que a escravidão era boa antes de tudo para os escravizados, pois, por meio dele os africanos eram pretensamente salvos da vida selvagem e do paganismo. José de Alencar pensava assim. A libertação, portanto, prescindiria de políticas públicas de integração. Afinal, a liberdade devia ser considerada como um valor em si.

Para Gary Marcus e outros não se trata de interromper o avanço da inteligência artificial, mas de pensar nas suas consequências. Os otimistas garantem que os empregos desaparecidos serão substituídos por outros. Em seguida, em nota de rodapé, acrescentam: para os que se qualificarem. Nunca, porém, houve uma escala disruptiva como a atual. O que farão os humanos quando tudo o que estruturava o mundo for realizado por máquinas? Já não se trata de especulação, mas de questão de planejamento. O que fazer do tempo livre de bilhões de pessoas cujas força de trabalho não terá mais valor?

Debord, na tese 66, cravou também: “O espetáculo não canta os homens e suas armas, mas as mercadorias e suas paixões”. Pode-se colocar a palavra tecnologia no lugar de armas. Ou, com alguma perda, substituindo mercadoria. Se a bitola de Debord é estreita demais, não custa recorrer a algumas citações mais eruditas. Karl Popper: “Os que nos prometem o paraíso na Terra nunca produziram nada além de um inferno”. Arthur C. Clarke: “Qualquer tecnologia avançada o suficiente é indistinguível da magia”. Wiliam Bateson: “Quando o poder é descoberto, o homem sempre recorre a ele”. Genial, o homem inventou a tecnologia que vai dispensá-lo de ser o que sempre tem sido. Só lhe falta inventar um novo futuro, um novo presente e um novo passado.

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