Juremir Machado da Silva

São Miguel dos Milagres

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São Miguel dos Milagres Ao sabor do vento e das ondas | Fotos: Juremir Machado da Silva

A crônica é um problema crônico na minha vida. Sou dependente dela. Se não a pratico toda semana, tenho crises de abstinência. Sou capaz de ler 300 páginas por dia só para me aliviar dos sintomas. A pandemia havia interrompido uma atividade fundamental das nossas vidas: as temporadas em São Miguel dos Milagres, em Alagoas. O que isso tem a ver com a primeira parte do enunciado? Simples: eu andava agudamente saudoso de escrever crônica sobre São Miguel dos Milagres. A nossa última vinda fora em 2019. De lá para cá, a olho nu, o que mudou neste paraíso de mar e coqueirais? Muito, mas não tudo. Ainda é possível caminhar a perder de vista e, em ritmo de Bossa Nova, se perguntar para que serve o mar, tanto mar, tanto azul?

A especulação imobiliária cravou o olho em São Miguel dos Milagres e vem preenchendo cada ponto vazio com condomínios de luxo ou nem tanto. Fala-se em casas adquiridas por jogadores de futebol. Não imagino, porém, Neymar passando uma semana, nem com todos os seus parças, neste lugar abençoado por Deus e feito sob medida para a poesia. Quem flana por aqui é Djavan, dono de uma bela residência de cara para o marzão. Aos finais de tarde, é possível vê-lo andando, como qualquer um, em busca de alguma metáfora salgada. Pensei até em fazer algumas perguntas para ele sobre açaí guardião e outras imagens dele que seduzem tanto mais quanto menos consigo decifrá-las ou lê-las.

Direto ao ponto: São Miguel dos Milagres é tudo de bom. Sempre foi. Continua sendo. Tem mais gente do que no começo dos anos 2000, tem mais casas, mais turistas e mais barcos transbordando de passageiros. Mesmo assim, continua linda, com recantos de serenidade, águas quentes e translúcidas, mangue em estado puro, barcos coloridos balançando com a brisa do final de tarde e um velho poeta que continua a escrever os seus versos na areia. Nada mais justo. Todo verso, afinal de contas, esvai-se depois de lido nesta sociedade das imagens e das celebridades eternas como um BBB.

Vale a pena acordar as quatro horas da manhã, gastar uma hora de voo até São Paulo e mais três horas de São Paulo até Maceió. Por fim, uma horinha de carro contemplando cana de açúcar, búfalos, colinas ondulantes e, enfim, o mar. Muda tudo no Brasil, só não muda o BBB! Dizer que na primeira vez era o BBB1, apresentado por um ainda jovem Pedro Bial, hoje um ancião, ainda que bastante preservado pelas intempéries dos anos globais. Depois desse primeiro, nunca mais olhei outro. As chamadas me bastam. Fujo. Não por esnobismo. Sou do povo. Apenas por falta de apetite para a vida alheia.

Em São Miguel dos Milagres, esqueço tudo isso. Sou absorvido pela natureza a tal ponto que me vejo engolido por uma vertigem de areia, vento, cantos de pássaros, ondas e banhos sem pressa. Se eu tivesse grana, virava vizinho do Djavan. De repente, até trocava algumas metáforas com ele. Ou fazia concorrência ao velho poeta local: escrevia também versos na areia. Ou me tornava sombra, sombra com sombra, até o sol ceder lugar à lua. É crônico.

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