Juremir Machado da Silva

Sem açúcar nem afeto

Change Size Text
Sem açúcar nem afeto Foto: Rennan Teixeira

Chico Buarque não canta mais em shows a sua música “Com açúcar, com afeto”, encomendada por Nara Leão, em 1967. Ele teria ouvido o argumento de mulheres sobre o machismo da letra. Pedro Osório me sugeriu falar disso. Eta assunto difícil. Se duvidar, fica-se mal com mulheres e com admiradores do Chico, ou seja, mulheres e todo mundo, menos a extrema direita, que lamenta não ter alguém tão competente. Chico é o cara. Talentoso, bem posicionado, terror dos fascistas, gênio. Musicalmente falando é um negócio, chega a arrepiar. Vai ser bom assim nalgum lugar que a gente esteja sempre perto para ouvir.

Fecho com Chico. Não dá mais para entoar candidamente “com açúcar, com afeto, fiz seu doce predileto, pra você parar em casa, qual o quê. Com seu terno mais bonito, você sai, não acredito, quando diz que não se atrasa. Você diz que é um operário, sai em busca do salário, pra poder me sustentar”. O malandro se esbalda e volta pedindo carinho e guarida. A mulher, sofredora e apaixonada, cede como se isso fosse obrigação sua: “E ao lhe ver assim cansado, maltrapilho e maltratado, como vou me aborrecer? Qual o quê. Logo vou esquentar seu prato, dou um beijo em seu retrato e abro os meus braços pra você”. Era um hino à submissão da mulher ao poder masculino.

Como nossos pais, não é mesmo? Porém, quanto sofrimento, briga, separação, mágoa, tristeza, desespero. A ótima colunista Nina Lemos salienta o paradoxo dessa música famosa: “Não, nunca vou parar de amar essa canção. Inclusive, escrevo ouvindo no repeat e cantando junto. Mas que a música datou, datou. Isso é, inclusive, natural, já que a música tem mais de 50 anos. Acontece. Para mim, essa canção fica como uma memória até carinhosa dos homens da geração do compositor e do meu pai“. Até no machismo explícito Chico Buarque fez letra bonita?

Sim, a gente ouve e, pela linda musicalidade, fica encantado. Quando para e analisa o conteúdo da letra são outros quinhentos. Ninguém publicamente pediu para Chico não cantar mais sua canção, o que ele não faz mesmo, segundo li, desde 1975. Trocando em miúdos (ah, essa é outra música, linda demais), salvo se mulheres falaram em privado para o artista, foi ele mesmo quem resolveu parar de cantar “Com açúcar, com afeto”. Se não falasse, ninguém notava. Pareceria simplesmente que ele estava mais interessado em outras canções.

O compositor defende-se sugerindo que não se pratique anacronismo contra ele: “Elas (feministas) precisam compreender que naquela época não existia, não passava pela cabeça da gente que isso era uma opressão, que a mulher não precisa ser tratada assim. Elas têm razão. Eu não vou cantar ‘Com açúcar, com afeto’ mais e, se a Nara estivesse aqui, ela não cantaria, certamente”. Não passava pela cabeça de quem? Certo, faltava um ano para 1968 e a explosão das lutas liberatórias, mas a crítica ao machismo já era uma realidade. O “Segundo sexo”, de Simone de Beauvoir, é de 1949. Leila Diniz já tinha 22 anos e escandalizava “transando de manhã, de tarde e de noite”.

Em 1967, uma edição da revista Realidade, a mais vanguardista de uma época de ditadura, foi censurada por atentar contra a “moral e os bons costumes”. Tinha como tema a “mulher brasileira””. Na Realidade a jornalista Carmen Silva mostrava o lado sem açúcar nem afeto da vida de uma mulher naqueles tempos fálicos: “A sociedade não lhe dá o direito de sair procurando o seu complemento. É ficar em casa, bem arrumadinha, bem comportadinha, esperando, merecendo. É tratar de ser vista sem ficar marcada, de ser escolhida sem se oferecer. É fazer de conta que não tem sexo, até conseguir marido e ser resgatada na qualidade do sexo”. Depois seria aguentar tudo para não perdê-lo.

Pode-se considerar que Chico Buarque retratou a vida como ela era. Mas, nesse quesito, nessa canção, não se mostrou à frente do seu tempo. “Com açúcar, com afeto” exalta mais uma Amélia, a “mulher de verdade”. A polêmica, se polêmica há, diz respeito a como lidar com tantas obras do passado, lidas, cantadas, aplaudidas e agora criticadas. O que fazer? Ouvir trancado no banheiro? Não ouvir? Ouvir com senso crítico? Cancelar? Talvez se tenha de fazer algo paradoxal: ouvir, examinar criticamente, manifestar-se sobre o conteúdo, inserir no seu contexto e tocar em frente. Em 1967, o moderno Chico Buarque, jovem promissor e prafrentex, já podia ter ido além do “amelismo”. Nara, a “música da Bossa Nova”, porém, diz ele, queria uma música de mulher sofredora. Resta saber se queria uma ode ao sofrimento.

Muito provavelmente Nara queria cantar algo sobre a vida de uma mulher que vivia e amava dessa maneira que a música mostra, o que correspondia a tantas mulheres dessa época, ou a maioria. E Chico soube fazer sem que isso representasse a sua maneira de ver o mundo. Chico é Chico. Tomou a decisão sábia. “Com açúcar, com afeto”, assim como Amélia, restará como um documento sobre uma época. Falta nela pelo menos o ar de um tempo que já se mostrava como de mutação, uma ironiazinha piscando como um aviso sutil. Não deixa de ser a fotografia de uma realidade que machucava demais e na qual se chegava a tomar esse tipo de relação com o abuso como prova de grande amor.

RELACIONADAS

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.