Juremir Machado da Silva

Sessenta anos do golpe midiático-civil-militar

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Sessenta anos do golpe midiático-civil-militar Golpistas atacaram Congresso, STF e Palácio do Planalto em 8 de janeiro de 2023 | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Em 2016, publiquei este texto, agora atualizado, como posfácio ao meu livro 1964, golpe midiático-civil-militar (Sulina). Em 2024, vamos fechar 60 anos desse acontecimento sombrio da história brasileira. Em 8 de janeiro de 2023, porém, tivemos nova tentativa de golpe por parte dos “patriotas” do capitão Bolsonaro. Se tem golpe, tem militar, ex-militar, massas de manobra e mídia. No caso de 2023, parte da mídia convencional e as redes sociais.

Em 1964, os militares, auxiliados pelos Estados Unidos da América, executaram um golpe, no interesse de parte do empresariado brasileiro, com a legitimação da mídia.

Foi um golpe midiático-civil-militar. Reduzi-lo a civil-militar sempre revelou uma profunda incapacidade de compreensão do papel da imprensa como elo entre o civil e o militar. Em 2016, com os militares fora do jogo, os mesmos extratos sociais, com a legitimação da mesma mídia, decidiram articular o impeachment da presidente da República, Dilma Rousseff. Buscou-se um artifício jurídico para justificar uma nova ruptura institucional.

Sempre que se é obrigado a afirmar que as instituições estão funcionando bem, há sinal de ruptura institucional no ar. O Brasil ainda não tem uma democracia consolidada. Flertamos com golpes e impeachment a cada governo.

Há golpes que se consagram como positivos e ganham nomes honrados. O golpe militar da República atende por “proclamação”. O golpe de 1930 chama-se “revolução”. Partamos daí. Foram 15 anos sem eleições presidenciais diretas. E um golpe, em 1937, dentro do golpe. Em 1945, um golpe derrubou o ditador. Em 1950, tentou-se golpear o candidato Getúlio para que não concorresse ou, se vitorioso, não tomasse posse. Em 1954, os golpistas foram derrotados pelo cadáver de Vargas. O ano de 1955 foi de tentativas e golpes.

Café Filho, sucessor de Getúlio, tomou uma rasteira. Quis ser esperto aplicando um atestado médico e não “voltou do hospital” para o palácio. Carlos Luz, presidente da Câmara dos Deputados, assumiu. Quis dar um golpe em JK impedindo a posse do presidente eleito. Tomou o golpe preventivo do general Henrique Teixeira Lott em defesa da normalidade institucional. O senador Nereu Ramos sentou-se na cadeira presidencial e meteu um Estado de Sítio providencial.

Lott bloqueou a volta de Café Filho. Ramos tocou o país até a posse de JK. Em 1961, Jânio Quadros renunciou. Tentou-se um golpe integral contra Jango. Falhou por causa da reação de Leonel Brizola. Aplicou-se um golpe pela metade, o parlamentarismo. O golpe midiático de 1964 ceifou as eleições presidenciais diretas.

Ficou-se sem votar para presidente da República de 1960 até 1989. José Sarney, eleito indiretamente, foi beneficiado por “golpezinho do bem”? É muito provável. Sem a posse de Tancredo Neves, deveria ter acontecido uma nova eleição indireta.

Fernando Collor, eleito no retorno à democracia, foi deposto em 1992. Em 18 de maio 1999, a Câmara dos Deputados chegou a votar pedido de impedimento de Fernando Henrique Cardoso. O governo ganhou por 342 a 100 votos. Não passa 20 anos sem tentativa de interrupção de um mandato presidencial. O passado irrompe no presente.

Em 2016, passou-se a falar novamente em parlamentarismo, semipresidencialismo ou em qualquer coisa capaz de abreviar a permanência do governo eleito ou diminuir-lhe poder. O impeachment está previsto na Constituição. Sem base jurídica, o chamado crime de responsabilidade, porém, é golpe. O país não consegue abandonar suas tentações golpistas. Inventa novas roupagens para dissimular velhos cacoetes.

A questão é: por que o Brasil não consegue consolidar uma democracia sem constantes tentativas de interrupção de mandatos presidenciais?

FHC conseguiu aprovar uma emenda constitucional que lhe permitiu concorrer à reeleição. Foi, no mínimo, uma trapaça. Uma espécie de golpe. Talvez o Brasil tenha de inventar uma solução aberrante, uma nova jabuticaba, impedir não só a reeleição de pessoas, mas a de partidos. Os partidos em disputa semeiam contradições: o PSDB pregava a alternância no Brasil, mas não em São Paulo. O PT defendia a alternância em São Paulo, mas não no Brasil.

As regras do jogo atrapalham. Políticos só pensam no poder. Mas não apenas pela vitória nas urnas. Alguns trapaceiam. A corrupção do outro é inaceitável. A corrupção dos seus é desculpada como estrutural.

Quando o Brasil passará 20 anos sem tentativa de interrupção ou prorrogação de mandato presidencial? Quando o Brasil terá uma mídia comprometida com a democracia e com o respeito às regras do jogo?

Triste Brasil, triste país de tantos golpes, de tantas astúcias, artimanhas, malandragens e pretextos para chegar ao poder sem ganhar eleições. O PMDB, oriundo do velho MDB, que voltou a ser MDB, foi aceito como único partido de oposição durante a ditadura de 1964, ficou sem lançar candidato à presidência da República durante muito tempo.

Em menos de dez anos, entre 1985 e 1992, chegou duas vezes ao poder pela via indireta, com José Sarney, pilar civil da ditadura militar, e Itamar Franco. Pensar os golpes brasileiros, à luz dos fatos de 2016 e do 8 de janeiro de 2023, é um alerta contra o golpismo brasileiro e suas metamorfoses. Não podemos passar dos golpe de Estado clássicos aos golpes constitucionais. Não podemos saltar do golpe midiático-civil-militar ao golpe civil-midiático-judicial.

O Brasil precisa eliminar a síndrome do atalho. Será que se vacinou em 2023?

A forma, na democracia, conforma o conteúdo. Julgar por um suposto crime e condenar por um pretenso conjunto de fatos mais grave é uma forma de manipulação da opinião pública.

Em 2016, mais uma vez, entre o empresariado, a sociedade e os seus representantes, a mídia assumiu papel de coordenação. Na ponta, alguns dos mesmos veículos de 1965: Folha de S. Paulo, Estado de S. Paulo e O Globo. No lugar de Carlos Lacerda, uma miríade de jornalistas e de políticos sem o mesmo talento retórico, mas com a mesma sede golpista. Em substituição às publicações de Assis Chateaubriand, as revistas Veja, IstoÉ e Época. Poucas vezes, salvo em 1954 e em 1964, viu-se a sociedade brasileira tão radicalizada e dividida entre esquerda e direita, ricos e pobres.

A luta de classes, com nuances, contradições e exageros de categorias estanques, ganhou as redes sociais. A tentativa de golpe de 2016 surgiu como a primeira do Brasil na era total da internet, do facebook e do twitter. “Lacerdinhas” e “esquerdinhas”, ou “coxinhas” e “petralhas”, encontraram um palco virtual para se engalfinhar. O combate à corrupção era a parte justa dos confrontos. Mas foi desvirtuado por um juiz e por procuradores do MPF. Por trás dessa cruzada, escondia-se, quase à superfície, o ódio ideológico e o desejo de eliminar um rival do campo de lutas.

Em 2023, a Rede Globo, finalmente, estava do lado oposto ao dos golpistas.

A tentativa fracassou: o STF resistiu. Os generais da ativa não entraram.

Passou o perigo? Não se sabe. Relembrar, em 31 de março de 2024, o que aconteceu em 1964 significar atentar para todos os elementos da equação: mídia, empresariado conservador e militares. Os Estados Unidos decidirão de que lado estão nas eleições presidenciais. Uma volta de Donald Trump daria um novo alento a golpistas.

A democracia continua sendo, como mostrou Churchill, o pior dos sistemas, excetuados todos os outros.

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