Juremir Machado da Silva

Filhos na velhice para não prejudicar carreira?

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Filhos na velhice para não prejudicar carreira? "O produtivismo capitalista não tem limites" | Foto: Albanien/Unsplash

Pascal Picq, paleoantropólogo e professor do Collège de France, conta no seu livro Sapiens contra sapiens que uma empresa sugeriu a mulheres congelar óvulos para ter filhos quando estivessem aposentadas. Parece mentira ou distopia. Transcrevo o parágrafo para não deixar dúvidas: “Embora a fertilidade feminina seja menos sensível aos fatores ambientais, ela sofre com pressões sociais. Recentemente, uma grande empresa do segmento digital propôs a suas colaboradoras o congelamento de óvulos”. Fica sugerido que foi uma das Big Techs. Mais: “A proposta foi motivada pela busca de uma solução técnica para que as mulheres pudessem se dedicar plenamente à carreira sem ser penalizadas pela maternidade e, se possível, para quem pudessem adiá-la para depois da menopausa”. O produtivismo capitalista não tem limites.

Solução técnica? Picq sente-se na obrigação de explicar: “A velha ideia solucionista para nos libertar das pressões da natureza. O gesto pode parecer uma generosidade, mas constitui uma monstruosidade. Nossa adaptabilidade biológica, cognitiva e social repousa na primeira infância e eis que se pede às mulheres que procriem quando eles forem idosas”. A quem poderia parecer generosa uma loucura dessas? Certamente aos que colocam à produção acima de tudo. O autor ainda diz: “As crianças se formarão cognitiva e socialmente com pais idosos e aposentados das atividades econômicas. A aposentadoria será dedicada à reprodução e não mais à transmissão filiar entre avó e netos. Decididamente, as questões de filiação nunca estiveram tão vivas quanto em nossas sociedades pós-modernas”. Picq se engana: isso é próprio de uma exacerbação da modernidade, a hipermodernidade.

Fiz uma rápida pesquisa na internet e descobri que Apple e Facebook são os pais dessa ideia, que circulou em 2014. O projeto era apresentado como em favor da emancipação feminina. A maternidade deveria poder esperar. A carreira, não. Feminismo ou machismo? Pode-se ler sobre o tema o seguinte: “As empresas de tecnologia desejam ser mais atraentes para as mulheres, pois elas representam mais da metade da força de trabalho do país. Não é de se estranhar que as mais inovadoras empresas estejam buscando maneiras que ajudarão diretamente a contratar mulheres talentosas”. A declaração é de James Hayton, professor de gestão de Recursos Humanos da Universidade de Warwick.

Instalada a polêmica, recorreu-se ao argumento da livre escolha. Nenhuma mulher seria obrigada a aceitar. Evidentemente que aceitar abriria portas. Como diria Guy Debord, “o espetáculo não canta os homens e suas armas, mas as mercadorias e suas paixões”. O capitalismo não canta as mulheres e suas gestações, mas a produção e suas mercadorias. Primeiro produz, ganha e gera dinheiro, depois tem filhos. A natureza talvez fique chocada com essa alteração no seu ciclo. É isso que certamente se pode chamar de planejamento suave, mas total, da vida das pessoas num sistema de liberdade de escolha.

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